terça-feira, 10 de julho de 2012

Adivinha quem vem jantar

Spencer Tracy era um actor extraordinário, a tal ponto que detém ainda hoje o recorde de nomeações para o Óscar de melhor actor, nove, tendo ganho por duas vezes. Infelizmente Tracy tinha diabetes, o que agravado pelo alcoolismo contribuiu para um ataque cardíaco que o fez parar de fazer cinema em 1963. Já em condições difíceis, o actor voltou aos sets para fazer um último filme em 1967 - Adivinha quem vem jantar - contracenando mais uma vez com a sua amante de longa data, Katherine Hepburn; Tracy ainda conseguiu filmar todas as suas cenas, e morreu duas semanas depois. O filme trata de uma temática difícil, os casamentos interraciais (numa altura em que vários Estados dos EUA ainda os ilegalizavam): a história inicia-se quando uma jovem branca decide apresentar o seu noivo aos pais "liberais" trazendo-o para jantar em casa deles, e gira em torno das reacções ao facto de o noivo ser negro, e os choques intermináveis causados por diferentes visões do mundo.

Os líderes europeus fizeram na passada semana uma espécie de adaptação política do filme. Na esteira da eleição de um novo presidente francês com uma agenda de "crescimento", os 27 governos organizaram um "jantar para o crescimento" nas instalações do Conselho, em Bruxelas. A ocasião serviu para apresentar Hollande aos seus novos pares europeus - um grupo em regra bastante conservador, sobretudo os partidários da linha dura da sra. Merkel, firme no seu papel de matriarca - e, tal como no filme de 1967, a química não funcionou e a consonância deu lugar ao amargor. O outro pretendente ao Eliseu, Nicolas Sarkozy, afinava estratégias antes de cada cimeira com mais ninguém que a chanceler, e Merkel participou activamente na campanha falhada pela sua reeleição. É óbvio que Hollande é um parceiro indesejado, e ele sabe-o.

As boas notícias são que o fosso que separa os dois cilindros do motor franco-alemão não é tão largo como o que é geralmente apresentado - e nunca poderia sê-lo, numa conjuntura tão delicada como a que vivemos. O encontro Merkel-Hollande (é uma questão de tempo até que o neologismo "Merkollande" substitua "Merkozy") tem sido apresentado quase como o duelo final de um vídeojogo, em que os respectivos bravos cavaleiros pugnam pela austeridade de um lado, pelo crescimento do outro. Naturalmente a realidade é bem distinta: todos desejam crescimento (a forma de o obter a prazo é que diverge), e todos concordam (menos os radicais gregos de esquerda que vão vencer as eleições de Junho) que alguma austeridade na despesa pública é neste momento desejável ou, pelo menos, inevitável.

Além da comida, o que esteve em cima da mesa no jantar para o crescimento foram medidas que já reúnem o seu consenso a nível europeu: grandes projetos de infraestruturas, mais dinheiro para o Banco Europeu de Investimentos, uma taxa sobre as transacções financeiras (ferozmente combatida pelo Reino Unido). Mas por outro lado também o tema escaldante das eurobonds, que Hollande considera o ponto de partida e Merkel apenas como o aumentar do problema. E os bancos da Espanha (e de Portugal...). E a Grécia. A Grécia que, em Junho, poderá ter-se votado a si própria para fora do euro. No final de Junho ocorrerá o verdadeiro Conselho Europeu "regular", que dura dois dias, e só aí chegará a pièce de resistance deste jantar.

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