Sepp Blatter sucedeu
a Sepp Blatter. Isto não é notícia nenhuma, obviamente: esta afirmação tem ares
de inevitabilidade cósmica. Ou seja, tal como se ensinava há muitos anos nas
faculdades de jornalismo, se o homem mordeu o cão é notícia, mas se o cão
mordeu o homem já não é. E não há cão mais mordedor que Blatter.
A notícia aqui é que
continuamos a permitir, impotentes, que escroques se apoderem daquilo que nos é
querido e importante – neste caso, do magnífico desporto que é o futebol, “the
beautiful game”. Um jornal anglo-saxónico publicou ontem uma lista que faz
tremer qualquer adepto, a dos 12 homens que arruinaram o futebol. Um deles é o
português Jorge Mendes (simbolizando ali os agentes de futebolistas que também
gerem os interesses de clubes inteiros, num conflito de interesses evidente),
outro o tailandês que gere uma gigantesca rede de apostas ilegais em resultados
combinados, ainda outro Jean-Marc Bosman, o futebolista medíocre que abriu o
caminho à extinção completa do amor à camisola. Mas todos os restantes são o
que os brasileiros designam por “cartolas”: os dirigentes que nunca jogaram,
nunca treinaram, nunca vibraram, mas obtêm do futebol uma vida principesca e
decadente. E à cabeça deles todos, obviamente, está o suíço Blatter, o homem
que trabalha na FIFA desde 1975 (são quatro décadas) e é o seu presidente desde
1998. Nesse ano, o lucro desta organização sem fins lucrativos (suprema ironia)
foi de 25 milhões de dólares, mas hoje em dia é de uns muito mais adequados
1500 milhões, provindos das multinacionais que pagam o carrossel: Coca-Cola,
Adidas, Hyundai, Visa, McDonald’s, Gazprom e Budweiser.
As espectaculares
detenções de 14 vice-presidentes e altos responsáveis da FIFA, ocorridas dois
dias antes da reeleição do ditador de Zurique, só pecam por muito tardias mas
têm também as suas zonas de sombra: foram instigadas pela Justiça dos EUA, um
país que não quer saber de futebol mas consegue mais uma grande vitória no
plano da imagem, bem nas barbas das passivas autoridades europeias (estas, como
sempre, fortes com os fracos mas fracas com os fortes); e, apesar de ser mais
um fortíssimo argumento para todos nós que sabemos quão podre e tóxica é a
cúpula reinante do futebol, o processo está incompleto. O Padrinho Blatter
passou incólume, foi reeleito e excedeu-se no desplante do seu discurso de
vitória, na sexta-feira: “Sou o presidente de todos. E não posso andar a vigiar
o que todos fazem”.
Não o subestimem.
Blatter, o déspota apoiado por outros déspotas, é tão maquiavélico como hábil:
não mudará os anfitriões dos próximos campeonatos do mundo, Rússia e Qatar, a
não ser que sinta o seu lugar em perigo; e se isso não aconteceu até agora, é
difícil imaginar que venha a acontecer. Pelo contrário, diria mesmo que existe
uma boa possibilidade que o suíço queira alterar o seu legado histórico e
surgir, nos próximos tempos, como o homem que está a limpar a FIFA, em vez de
simbolizar o homem que conspurcou o futebol. Já houve
transformações mais improváveis.
No fundo, a dúvida
que me assalta ao assistir a todo este espectáculo deprimente é mais
preocupante: os anos passam e simplesmente não conseguimos resolver um problema
tão patético como a FIFA. Que esperança podemos ter então em salvar os mares
moribundos, combater o fanatismo religioso ou alimentar todo o planeta? Nem
quero pensar na resposta.
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