terça-feira, 9 de junho de 2015

Mais sonambulismo


Escrito por um historiador britânico, "Os Sonâmbulos" é um trabalho de investigação notável sobre os anos que conduziram ao verão de 1914 e a catastrófica Grande Guerra. A tese central do livro de Chris Clark – que ensina História europeia moderna em Cambridge – é de que os principais actores políticos da época, desde o kaiser Guilherme ao rei de Inglaterra, passando pelo czar das Rússias ou o presidente francês, se depararam muitas vezes com sentimentos de "inevitabilidade". Ou seja, que considerando as acções de todos os outros, a sua reacção só poderia ser uma, e essa significava mais um pequeno passo em direcção ao abismo. Todos os passos somados levariam à queda – de repente, os sonâmbulos acordaram e a Europa estava em guerra total.

Perante os nossos cansados olhos, um processo similar desenrola-se neste momento (esperemos que com consequências menos trágicas) no que respeita à relação do Reino Unido com a família europeia. Na sexta-feira de manhã, a Europa acordou com os resultados bombásticos das eleições britânicas: os conservadores chegaram à maioria absoluta. Como o partido do primeiro-ministro Cameron, numa deriva cada vez mais eurocéptica, tinha prometido referendar a continuação do país na União Europeia se continuasse no poder (num dos tais "pequenos passos" que, de promessa eleitoral, passa a profecia que se auto-realiza), vamos ter direito a uma consulta ao povo em 2017 (ou mesmo já em 2016). O Reino Unido fica dentro ou fora da Europa?

Mesmo após o referendo, esta não é uma pergunta de branco ou preto, há muitas zonas de cinzento. Desde logo porque se pode argumentar que nunca – sobretudo com o actual primeiro-ministro – o país esteve realmente dentro da Europa, o que aliás provoca a situação paradoxal em que David Cameron se encontra: quer “reformar a União Europeia” e “renegociar a situação do Reino Unido na UE”, mas nunca teve tão poucos amigos, ou tão pouca influência, como actualmente. O que torna a sua tarefa numa quadratura do círculo: terá de apresentar propostas que agradem aos seus correligionários de partido, cada vez mais radicais; a um eleitorado cada vez mais simplista e nacionalista, a quem prometeu um referendo; e a uns parceiros europeus de paciência esgotada (não por acaso, a mensagem de parabéns de Juncker a Cameron na sexta-feira terá sido uma das cartas mais curtas de sempre).

Essa negociação impossível não vai resultar, logo a pergunta será colocada: sim ou não à Europa? Alguns amigos britânicos que trabalham em política professam-me a sua esperança em que o bom senso venha a prevalecer, e lançam os seus argumentos: os conservadores, no fundo, apenas obtiveram 37% dos votos expressos; perante uma alternativa clara à Europa, os britânicos, que bem no fundo se sentem europeus, votarão sim; e claro, o pragmatismo ajudará muito (3 milhões de empregos, 25 000 empresas e muitos milhões de milhões de libras dependem do mercado único e do facto de Londres ser uma capital europeia).

São ilusões. Neste momento, não há vitória possível para o “sim”; o referendo será sobre matérias mais emocionais – e totalmente falaciosas – como “mais soberania”, desconfiança em relação a Bruxelas, o facto do país ser uma ilha, etc. Enquanto sabemos o que o “sim” significa, não sabemos bem o que o “não” quererá dizer, mas isso é precisamente um trunfo para esse campo, que aglutinará tudo – desde o voto de protesto contra o sistema, como o nacionalismo radical, como aqueles que querem ser uma segunda Suíça… O “não” vai vencer a votação.

A Europa precisa e vai ter saudades do Reino Unido. Este, curiosamente, vai ter menos saudades da Europa, mas perderá muito mais com a separação. Os sonâmbulos estão outra vez a caminhar para o abismo.

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