quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Dia do arroz com ervilhas

A emigração é velha como o mundo. Os primeiros humanos emigraram da massa continental que é hoje África para povoar todos os continentes, e tal foi apenas o início de uma história sem fim: não mais as populações deixaram de abandonar casa e raízes e partir para outras paragens em busca de paz, comida, trabalho, melhores condições de vida ou, muito simplesmente, a felicidade.

Tantas vezes a busca foi infrutífera. Tantas vezes, do outro lado, o suposto Eldorado nada mais reservava que dureza e desilusão. Tantas vezes as dificuldades no local de origem foram substituídas por outro tipo de obstáculos, agigantados pela discriminação ou pela saudade.


A rica região do rio da Prata, descoberta por Magalhães, disputada ao longo de séculos entre portugueses e espanhóis, atraiu (sobretudo na primeira metade do século XX) um enorme contingente de europeus oriundos das mais desfavorecidas partes do Velho Continente, com grande destaque para italianos do Sul do país, que exerceram tremenda influência na construção de dois países (Uruguai e Argentina) – a ponto de terem criado em Buenos Aires um dialecto próprio com origens no submundo e no tango, o lunfardo.

A emigração é uma força poderosíssima de mudança. E como sempre acontece, também os italianos transportaram para a longínquo Novo Mundo os seus genes, os seus hábitos, a sua cultura; e a pobreza pachorrenta do Mezzogiorno dava amiúde lugar a uma subsistência precária nas pampas. O magro salário chegava a cada dia 1, pelo que os últimos dias do mês eram passados em sobressalto e sem dinheiro para o bife, e para se conseguir chegar ao proverbial “panza llena, corazón contento”, já não sobravam muitas opções de alimentação: talvez algumas batatas, um pouco de farinha, eventualmente um ovo. Ingredientes bastantes para fazer um prato de gnocchi, simples, barato e que enche facilmente o estômago. Os “nhoquis” tornaram-se a comida dos últimos dias de cada mês, e a cada dia 29, as casas de pasto só ofereciam esse prato, à volta do qual se reuniam todos – família, amigos ou conhecimentos de ocasião.

O “dia do nhoqui” assim ficou. Hoje, a cada dia 29, as famílias argentinas, uruguaias ou brasileiras do sul (e não apenas as de origem italiana, longe disso) reúnem-se para comer em comunidade a humilde iguaria enche-barrigas dos imigrantes sem dinheiro. A maioria dos restaurantes alinha sem pretensões, e serve várias variedades do prato. A dureza de antanho tornou-se factor identitário, a superação das dificuldades motivo de orgulho, os laços comunitários razão para celebração, sempre a cada dia 29.

Seria engraçado que os portugueses, também eles senhores tanto de uma história rica em privações como de uma gastronomia versátil e deliciosa, adoptassem algo parecido. Poderíamos designar o dia 29 como “o dia do arroz de ervilhas” – prato típico, barato, delicioso e retemperador. E além disso, óptimo para partilhar em comunidade e reforçar laços

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