quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Trégua de Natal

O vilarejo belga de Ploegsteert voltou esta semana a ver os pesados uniformes caqui do exército britânico e os lúgubres uniformes cinzentos do exército alemão. O pretexto foi a inauguração de um monumento ao jogo de futebol realizado entre soldados dos dois exércitos que constituiu uma espécie de ponto culminante da célebre “trégua de Natal” de 1914, quando a Grande Guerra parou espontaneamente.

A loucura tinha começado em Agosto. E alguns tinham embarcado em direcção à frente convencidos que aquela carnificina sem sentido estaria terminada a tempo de poderem passar o Natal em casa. No entanto, chegado Dezembro, qualquer soldado enterrado nas trincheiras ensopadas já sabia que do outro lado estavam outros homens que partilhavam da mesma miséria interminável.

Na noite de Consoada ouviu-se um cântico de Natal. O outro lado respondeu com outro. Em vários pontos da linha da frente, soldados alemães desejaram – em inglês – “Merry Christmas” àqueles que até aí tinham tentado matar, e vice-versa. Pequenos grupos encontraram-se na terra de ninguém para se cumprimentar, trocar tabaco, comparar experiências. Dar um rosto ao inimigo. E também cumprir a macabra tarefa de resgatar os cadáveres dos camaradas caídos no campo de batalha.


Todos tinham consciência do perigo mortal que corriam. Não era apenas a possibilidade bem real de tudo não passar de uma pérfida armadilha e a qualquer momento o inimigo poder disparar à traição; era também a certeza de que os oficiais superiores, desde as suas posições confortáveis a uma distância segura da linha da frente, continuavam a acirrar os ânimos e proibir terminantemente a confraternização com o inimigo – equiparada a traição e passível de ser punida com tribunal marcial e fuzilamento. Aqueles homens a quem já tinha sido tirada a dignidade tornavam-se pouco a pouco em máquinas de matar animalescas que viviam enterradas na lama. A única opção parecia ser a de matar para não, e até, morrer.

E no entanto eles desafiaram as ordens e o medo. 

Em dois ou três locais, incluindo o campo lamacento em St Yvon onde está agora uma estátua, aconteceu o impensável. No dia de Natal, os regimentos trocaram as armas por uma bola de futebol (provavelmente seria apenas uma “bola” feita de trapos) para darem a este grande desporto uma das suas histórias mais comoventes e duradouras. O diário de um soldado alemão afirma que o seu lado venceu por 3-2; não temos provas suficientes para ter a certeza. Mas afinal, em amigáveis o resultado é o que menos importa.

No dia 26 recomeçou a matança. Imaginem quão difícil deve ter sido a estes homens ter pegado nas espingardas e recomeçar a disparar contra aqueles com quem tinham acabado de comemorar o Natal… mas a partir daí não houve retorno. Em 1915 o ressentimento e o ódio já tinham subido para níveis incompatíveis com tudo que se assemelhasse à normalidade. A trégua de 25 de Dezembro de 1914 ficará sempre como um momento único em que o humanismo venceu por instantes a barbárie.

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