terça-feira, 8 de julho de 2014

Dormir e pedir não são crimes

Steve McCurry é um fotógrafo americano, um dos maiores de sempre na sua profissão, que se tornou especialmente famoso devido ao retrato da “rapariga afegã” – cujos enormes olhos verdes nos inquietavam desde a mais reconhecida capa da “National Geographic” de sempre –, mas há outra chapa pela qual o fotógrafo tem uma maior estima: “foi esta foto que me fez”, disse o homem a quem em 2010 foi dada a honra de disparar o último rolo de filme Kodachrome alguma vez fabricado.

A foto foi tirada em 1972 na Cidade do México. Nela vê-se uma montra de uma loja de mobiliário e por trás da vitrina está uma reprodução de uma sala de estar, com uns candeeiros design, uma mesinha de café cromada e um convidativo sofá felpudo. Em primeiro plano, a dois metros do sofá mas do lado de fora do vidro que serve como divisória, está um sem-abrigo a dormir no passeio. O seu rosto não é visível – o homem pode ser qualquer um de nós.

A imagem é forte e o contraste chocante tornou-a conhecida. Se fosse hoje, no entanto, a mesma foto arriscar-se-ia a não ser destacar entre tantas outras, até por se ter banalizado: o número de sem-abrigo não pára de crescer nos países desenvolvidos. Estes seres humanos ainda sofrem do estigma das razões para a sua condição passarem por alguma doença mental, ou pelo abuso de drogas ou álcool. Essa ideia é perfeitamente redutora. A voraz crise tirou emprego e casa a muitas pessoas; o desmantelamento dos sistemas de saúde pública e protecção social deixaram sem rede muitas outras que já estavam em situação de risco. Muitos dos que estão hoje nas ruas têm percursos parecidos com qualquer cidadão comum; num mundo onde as desigualdades crescem, os ricos estão mais ricos – mas também há cada vez mais pobres ou em risco de o virem a ser.

E agora a tenaz fecha-se. Talvez impulsionada por experiências do género nos EUA, a Europa começa a criminalizar os seus sem-abrigo. A ideia é a de punir quem está na mendicidade, talvez pela sua “preguiça”, talvez pela “falta de talento”… chega-se ao ponto de sugerir que há pessoas que almejam fazer carreira como vagabundo. Mas não será essa vida já punição suficiente? O direito a uma habitação condigna é, ou deveria ser, inerente à nossa condição humana, que é certamente afectada pela falta daquela.

Tornar a simples ocupação do espaço público para dormir como crime – como acontece agora em vários pontos da Noruega e da Bélgica, de Itália e de Espanha, bem como em toda a Hungria – representa mais um passo de gigante no nosso resvalar contínuo em direcção a sociedades impiedosas. Em Verona, a cidade do amor romântico idealizado em “Romeu e Julieta” que é agora gerida pelos extremistas da Liga Nord, é mesmo proibido dar de comer a um sem-abrigo – como se estivéssemos a falar de uma praga de pombos. Confessada a impotência em ajudar alguns dos seus habitantes, alguns Estados pensam que é solução é escondê-los, proibi-los, varrê-los para debaixo do tapete. A repressão, como sempre, apenas vai transferir o problema – para lugares mais recônditos onde será impossível ajudar quem está em dificuldade, ou para prisões.

Reconforta saber que o novo Parlamento Europeu, logo na sua sessão inaugural, votou claramente (isolando os “senhores não” do eurocepticismo) a favor de uma estratégia europeia de combate ao fenómeno dos sem-abrigo. Para isso será preciso dinheiro e vontade – vontade de relegar a foto de McCurry para o caixote de lixo da História.

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