terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Roubar sim... mas sempre dentro da lei

O Tribunal de Justiça da União Europeia (que por acaso se situa no Luxemburgo) acabou de decidir: Lisboa não será castigada por desviar os fundos europeus que se destinavam originalmente às três regiões mais pobres de Portugal – o Alentejo, o Norte e o Centro do país. Por outras palavras, o menino bem alimentado roubou a comida do prato dos irmãos famintos mesmo debaixo dos seus narizes, e os papás acabam de dizer que não há qualquer problema – e isto apesar do tal irmão gordinho andar a levar más notas na escola.

Há muito tempo (demasiado segundo alguns; desde os primórdios do império segundo outros, mas seguramente desde a regência do marquês de Pombal) que Lisboa canibaliza o país que governa, sugando recursos e oportunidades de forma centrífuga, criando um país macrocéfalo - com uma cabeça enorme, mas sem pernas para andar ou braços para trabalhar. Nas últimas décadas, esse efeito intensificou-se até ao absurdo: aguaceiros de investimento público caíram sobre a capital, em autoestradas (que continuam maioritária e tranquilamente grátis para o utilizador), centros culturais/comerciais, expo98s, hospitais, escolas, estações de metro sumptuosas, renovações totais do aeroporto (o que não impediu a vontade de empenhar as jóias em construir um novo), gares para comboios rápidos (que ainda não existem)... ao invés de, como numa verdadeira democracia europeia, procurar aplanar o "terreno de jogo" e oferecer a todos os portugueses as mesmas oportunidades e a mesma qualidade de vida, o Estado português sempre fez precisamente o contrário: cobrou os impostos pagos por todos e gastou-os em esmagadora medida em apenas um local, sempre o mesmo privilegiado, de forma a guindá-lo ao estatuto de "grande capital europeia" que Lisboa, por complexo, sempre almejou. E ao entrar na União Europeia em 1986, inebriado pela bonança dos fundos europeus vindos de Bruxelas, o Estado lisboeta perdeu as estribeiras e a vergonha. No espaço de 20 anos, a "região" de Lisboa (não uma verdadeira região, claro, dado que a regionalização do país, apesar de inscrita na Constituição, não serve os interesses da capital e sempre será combatida por esta) enriqueceu de forma espectacular e, partindo de 70% da média europeia, está agora nos 107% - ou seja, na metade superior na tabela. Isto enquanto o resto do país se afunda na recessão e no desespero.

Nada acontece por acaso; as escolhas políticas e económicas têm consequências profundas na vida das pessoas. O Estado português gastou o que tinha e o que não tinha para desenvolver Lisboa; a parte de "o que não tinha" é esmagadoramente responsável por um défice público impossível de derrubar e uma dívida pública que passou de 60 a 120% do PIB em uma década. Agora, todos os portugueses são chamados a pagar a factura - e esta continua a aumentar (por exemplo, em breve abrirá um novo luxuoso hospital público em Lisboa, o de Todos os Santos, ao passo que no resto do país eles continuam a encerrar).

Há muito libertos de qualquer constrangimento ético ou moral, os políticos de Lisboa recorrem agora ao assalto puro e simples: como a região já não é elegível para receber fundos europeus, eles desviaram os fundos que estavam destinados às zonas mais pobres do país e investiram-nos... em si mesmos (60% dos fundos comunitários continuam a ter como beneficiário o próprio Estado português e não os agentes privados a que se destinariam...) Lamentavelmente, foi esta prática que acaba de ser considerada curial pela UE. O argumento é que, concentrando o dinheiro em Lisboa, haverá um efeito mágico que levará algum do mesmo a "transbordar" do copo e beneficiar ligeiramente as zonas à volta. Esperemos é essas gotitas de bem-estar transbordem rapidamente para as bocas abertas de fome no resto de Portugal - antes que estas tenham emigrado todas.

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