Ser considerado
“superior” aos restantes seres humanos – e pior, “reinar” sobre alguns deles –
sem outra base que não a “linhagem”, o “pedigree” ou o “nome”, e sem que o
mérito ou a competência sejam para aqui chamados, já fere as minhas convicções
e atenta aos princípios primordiais da existência humana. Mas quando a este
privilégio herdado e não conquistado se adiciona a falta de ética ou a
incapacidade de cumprir a lei, a questão entra no campo da essência: para que
serve, afinal, uma monarquia? É esse o debate que está repentinamente
(re)aberto em Espanha e na Bélgica, devido a dois casos de natureza algo
diferente, mas com muitos pontos em comum: em ambos, nomeadamente, as “cabeças
coroadas” inventaram uma fundação para fugir aos impostos. Estes mesmos que são
um imperativo ético e moral, mas também os recursos devidos ao Estado que é
afinal a única raison d’être das
famílias reais... o mesmo Estado que graças a esses mesmos impostos paga uma
mesada generosa às mesmas princesas e rainhas que tentam fugir aos impostos –
os poucos que ainda deveriam pagar (estão isentos de taxação sobre o
rendimento).
Na Bélgica, a
rainha-mãe Fabíola criou uma fundação estritamente legal que iria assegurar,
após a sua morte, “o sustento dos seus parentes em dificuldades”, tais como
sobrinhas ou primos. De passagem, a organização permitiria que o vasto
património da rainha ficasse isento do imposto sucessório (de uns exorbitantes
70% no país) e pagasse uns meros 7% de imposto aplicável às sociedades. A
notícia causou uma revolta considerável num país também ele sujeito à ditadura
da austeridade e cujos cofres públicos contribuem com 1,43 milhões de euros,
todos os anos, para a manutenção da “casa” da rainha-mãe, o seu palácio e
assessores (este valor não inclui as restantes dotações para o rei Alberto, a
rainha Paola ou os vários príncipes); o próprio governo, excepcionalmente,
alinhou nas críticas e Fabíola acaba de desistir da fundação. Não sem
consequências: a instituição monárquica está ainda mais manchada, e será muito mais
controlada de futuro (além de que receberá menos dinheiro dos contribuintes).
A
fundação das infantas espanholas era mais controversa, dado que operava na
ilegalidade: a infanta Cristina e o seu marido, Iñaki – os “duques de Palma de
Maiorca” (a cidade acaba de requerir a retirada do título, dado que não quer
estar associada a corrupção) – criaram-na para conseguir contratos, sobretudo nas ilhas baleares, inflacionando
o seu preço e inventando despesas que nunca foram feitas. Também contrataram “a
negro” imigrantes ilegais. Resultado, muitos euros sonegados aos cofres
públicos, e a maior crise de regime em Espanha desde o fim da ditadura, com um
coro de cidadãos furiosos a pedirem, nas ruas, uma verdadeira refundação do
sistema. Os contribuintes europeus estão exangues; sopram ventos de mudança, e
tal como em 1914, há quase cem anos, as aristocracias ainda não os entenderam.
Curiosamente foi um filósofo espanhol, Santayana, que famosamente disse:
“Aqueles que não conhecem o passado estão condenados a repeti-lo”.
Sem comentários:
Enviar um comentário