terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Non Habemus Papam


"Habemus Papam", a frase latina que anuncia ao mundo a eleição de um novo pontífice, é também o título do último filme até à data do italiano Nanni Moretti, um cineasta peculiar cujo anticlericalismo não o impede ali de apresentar um olhar doce, quase piedoso, sobre a organização interna do Vaticano. A história desta comédia ganhou novo significado a partir de hoje: no filme, um pacato cardeal, Melville, emerge inesperadamente do conclave como o novo Papa, mas antes de ser apresentado na varanda ao povo que o aclama na praça de S. Pedro, perde a coragem e foge em pânico. Após vários dias em que os cardeais o procuram convencer a assumir as suas novas responsabilidades (inclusive com a ajuda de psiquiatras), Melville lá concorda em aceder à varanda, apenas para dizer, deprimido mas com humildade: "Não sou eu. Não posso ser eu o líder que vós procurais".

O filme, profético, é de 2011. Dois curtos anos mais tarde, Ratzinger, agora Bento XVI, afirmou algo similar: "... tenho de reconhecer a minha incapacidade para exercer de boa forma o ministério". Em ambos, o ficcional Melville e o muito real Ratzinger, surpreende-nos a humanidade, choca-nos a impossibilidade do que acontece. Os paralelismos terminam aí: Melville é apenas um homem perdido e confuso, que sonha em ser actor e nunca almejou a liderar um imenso rebanho de crentes, ao passo que Bento XVI, depois de toda uma vida de discussão teológica e preparação para o cargo que atingiu finalmente aos 78 anos, nos reapresenta a características humanas que pensávamos esquecidas: a dignidade, a rectidão, mesmo a coragem – a coragem necessária para abandonar por sua própria vontade funções tão únicas quanto as suas. O actual papa poderia ter escolhido simplesmente resistir até ao seu fim, tal como seria esperado, tal como fizeram todos os seus antecessores fragilizados pela doença e a perda de capacidades; mas não, considerou que isso seria indigno e retirou-se. Ao fazê-lo, estilhaçou o dogma da infalibilidade papal, mergulhou a estrutura da fé que lidera numa mar de incertezas, redefiniu a própria natureza do papado – agora que sabemos ser possível abandoná-lo em devido tempo, e podemos mesmo pensar em mandatos de quatro anos, como um presidente – e abriu o caminho a um sucessor possivelmente mais reformador, mais liberal, mais em sintonia com os nossos tempos. E como se tudo isto não bastasse, surpreendeu meio mundo ao fazer, literalmente, História – apenas a quarta (ou sexta) vez que um papa deixa o cargo ainda em vida, a primeira por razões de saúde, e a primeira nos últimos 600 anos.

A mais recente tinha sido em 1415 – uma época em que o trono de S. Pedro era a chave para um poder imenso, tanto na vertente espiritual como na temporal, e controlá-lo era em grande parte controlar o mundo que importava. A França tinha conseguido impor os seus candidatos e trazê-los para Avinhão, Roma tinha resgatado a sua própria linhagem, e para aumentar o caos, um concílio parcial em Pisa tinha eleito um terceiro pretendente ao cargo. O papa proposto por Roma – Gregório XII, um italiano – foi convencido finalmente a abdicar para que um novo concílio, em Constança, pudesse eleger um candidato de consenso que acabasse com a brecha teológica que ficou na História como o Grande Cisma do Ocidente.

Mas houve um projecto de abdicação mais recente, nunca concretizado. Em 1941 o papa Pio XII receava ser raptado pelos nazis que controlavam então grande parte da Europa, e deixou instruções para o caso de isso acontecer. Os cardeais deveriam considerar que existia uma sede vacante e fugir para Portugal, um país neutral, onde se reuniriam para eleger um sucessor. A mim parece-me um bom plano: a Árvore de Jessé e a talha dourada da igreja de S. Francisco, no Porto, cortam a respiração de quem os vê da mesma forma que o tecto da Capela Sistina.

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