segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A narrativa do “gastámos muito”

“Vem-nos à memória uma frase batida”, canta o trovador. O primeiro-ministro de Portugal proferiu ontem uma dessas frases muito batidas: “vamos demorar muito tempo a pagar o nosso despesismo dos últimos 20 anos”. É uma ideia clara, forte, que ressona bem junto de eleitores traumatizados com cortes no seu rendimento e nos serviços públicos de que usufruem. Só há um pequeno problema: trata-se de uma mentira, e não é bem intencionada.

Passos Coelho poderia ter razão – se se estivesse a referir ao regabofe em que vive a antiga capital do império, Lisboa. Se os 20 anos incluíssem o Centro Cultural (ou Comercial) de Belém, os negócios obscuros da Expo98, os cerca de 1000 km de auto-estradas SCUT disponíveis na região do Vale do Tejo, as centenas de milhar de funcionários públicos concentrados na capital, as suas estações de metro e hospitais novos e subutilizados enquanto que no resto do país eles encerram, bom, aí a sua análise seria desgraçadamente certeira. Mas conhecendo nós como conhecemos os nossos actores políticos, a frase não passa de uma variação da conhecida narrativa “andámos a viver acima das nossas possibilidades” que nos tem vindo a ser impingida há alguns anos pelos arautos da austeridade – estando ela já completamente desacreditada.

Nunca é demais repeti-lo: a crise em que vivemos não foi provocada por desmesurada despesa pública. Mais uma vez: não foi provocada por demasiada despesa pública. Sobretudo sabendo que o Estado gasta mais em juros da sua dívida (que, sendo hoje em dia bem maior do que há cinco anos, se vai tornando efectivamente impagável...) do que aquilo que investe em educação ou investigação tecnológica, por exemplo. Em 2007, todos os países da zona euro (à excepção da Grécia) tinham
indicadores económicos sólidos, relativamente baixos défices, dívidas controladas. Espanha e Irlanda tinham mesmo superavits orçamentais e estavam assim em melhor posição fiscal que a Alemanha ou a França, por exemplo, e Portugal também não estava longe.

Aquilo que despoletou o marasmo em que, exportadores alemães à parte, vivemos hoje na Europa foram os resgates com dinheiros públicos feitos para salvar bancos privados e, em menor medida, a perda de receita de impostos provocada pela drástica diminuição da actividade económica directamente decorrente da imposição de uma austeridade draconiana – esta é renegada hoje por grande parte dos seus próprios criadores, mas continua em vigor e sem fim à vista para o túnel. Se o diagnóstico está errado, não admira que a cura receitada também o esteja.
A frase batida do primeiro-ministro atira-nos mais areia para os olhos, e é pena. Após tanto tempo de troikas, o que os europeus precisam é das boas notícias que nunca chegam; não de mais radicalismo ideológico travestido em fantasmas do passado.

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