Mas já lá vamos. Este
texto não tenciona servir de elogio fúnebre a um homem, porque para essa função
já muitos outros textos mais bem escritos apareceram antes. O que também parece
interessante é fazer uma pequena retrospectiva e avaliar percursos: como mudam
as opiniões à luz da extraordinária e improvável transformação de pouco
conhecido e aprisionado líder da resistência em extraordinário líder político
mundial...
Nos anos 80, as
perspectivas do prisioneiro 46664 da prisão espartana em Robben Island eram
assustadoras. De dentro da sua miserável cela, com um balde vermelho como casa
de banho, Mandela caminhava para 27 anos nas mãos dos seus verdugos. Não são 27
dias... é toda uma vida. No final dessa década, o guerrilheiro completaria 70
anos; tinha a saúde debilitada e a visão afectada pelos trabalhos forçados da
prisão. Steve Biko, Robert Sobukwe e outros grandes activistas já tinham sido
assassinados há muito e o regime do apartheid
parecia de pedra e cal, oficialmente proscrito pelo resto do mundo mas satisfeito
com os seus negócios que traziam prosperidade aos seus habitantes (brancos).
Nessa altura, e
mesmo reconhecendo o nome Mandela, o que nem era evidente, era muito duro estar
do seu lado. Muito mais fácil e popular era estar ao lado, ou pelo menos não
incomodar, os poderosos, os que estavam na mó de cima. Dos racistas que tinham
criado o apartheid. Foi assim que o
presidente Botha veio visitar a Madeira, recebido por João Jardim, em 1986; foi
assim que o Portugal do primeiro-ministro Cavaco votou contra resoluções da ONU
que apelavam à libertação de Mandela. Sim, estávamos do lado errado da História.
Os representantes do país fizeram-nos engolir os princípios em nome de uma
difusa servilidade aos interesses de um regime iníquo. E é também por isso que
é chocante ser o mesmo Cavaco o nosso representante no funeral do próximo
domingo; uma consciência (e uma memória) activas nunca o permitiriam.
Mandela não abandonou os seus princípios, nem
ao fim de 27 anos de prisão. Tal como Thomas More em “Um homem para a
eternidade”, deve ter dito: “O que importa não é se é verdade, mas sim se eu
creio; e não, não é eu creio, mas
sim eu creio”. E quando os seus
princípios finalmente prevaleceram, Mandela olhou em volta e perdoou. Nesse
gesto tão simples quão magnífico, devolveu-nos a esperança na Humanidade.
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