segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Por mares nunca dantes navegados

Melinde. Este nome de cidade africana foi como um bálsamo, primeiro, e uma miragem salvadora, depois, para a exausta e depauperada tripulação de Vasco da Gama e da sua frota de três naus mais um barco de mantimentos. Na viagem de ida surgiu ao caminho dos navegadores apenas uma semana depois da mal-sucedida abordagem a Mombaça, a ilha onde os mercadores árabes tinham um monopólio impenetrável. Já Melinde, o outro grande porto da contracosta africana, acolheu favoravelmente os portugueses numa lógica concorrencial de “os inimigos de Mombaça são nossos amigos”: o sultão recebeu os presentes do enviado do rei D. João II, permitiu a reequipagem da frota e, famosamente, facultou a Gama um piloto que já conhecia as monções e a parte do Índico que restava cruzar até aportar na Índia. Camões imagina o navegador a narrar ao sultão os grandes momentos da História de Portugal; nunca saberemos se foi realmente assim, mas o sultão jurou fidelidade ao rei português, e o porto tornou-se inestimável como guarda avançada do império construído no Oriente – desde logo, na muito mais dura viagem de volta pelo mesmo percurso. Ignorando a força das monções, a frota navegou contra o vento, e a mesma distância Melinde-Calecute que tinha demorado 23 dias à ida demoraria agora 132 dias. Foi um Vasco da Gama enfraquecido que reencontrou o sultão; metade da tripulação tinha morrido, e quase toda a restante sofria com o escorbuto. Mais uma vez, o porto amigo de Melinde permitiria à frota recompor-se, e chegar rapidamente de volta ao Cabo.


Hoje, a viagem de Mombasa a Malindi faz-se em duas horas por uma estrada razoável que apenas requer alguma perícia para contornar todos os obstáculos que abundam no Quénia, desde rebanhos de cabras a babuínos passando por camiões tombados e condutores com os máximos permanentemente ligados. Mombasa, que acabou por ser conquistada pelos portugueses não através do comércio mas pela força das armas, continua nos nossos dias a ser um porto comercial vibrante e uma ilha difícil de atingir (só há uma ponte), foi a capital do território até que os novos colonizadores ingleses, fartos do calor da costa e dos mosquitos, se refugiaram na altitude de Nairobi. Melinde, por seu lado, foi perdendo dimensão e estatuto e é hoje uma cidadezinha relativamente neutra, não fora por dois sobressaltos: os decadentes hotéis de praia; e os marcos da presença portuguesa. O padrão mandado erigir por Vasco da Gama no seu retorno continua lá, altivo, numa pequena península que guarda a baía, e é encimado por uma cruz de pedra coralina provinda de perto de Lisboa, logo original. Está em relativo risco, dado que a erosão causada pelo mar ameaça fazer ruir a coluna mais cedo ou mais tarde. Mas entrementes é visitado por toda a gente, habitantes, escolas ou turistas no local. A menção de que somos portugueses, por toda esta costa, continua a suscitar surpresa e respeito.

Perto fica uma pequena capela mandada erigir por S. Francisco Xavier na primeira das suas viagens missionárias, 40 anos depois de Vasco da Gama. As quatro paredes caiadas originais continuam a albergar missas, mas o local também não beneficia de uma conservação eficaz – até porque ao contrário do monumental Forte de Jesus, em Mombaça, nem o padrão nem a capela gozam da protecção da Unesco, e como aqueles, vários outros padrões espalhados pela costa de África e pelo Oriente estão ameaçados pela negligência. Não é pedir muito que seja Portugal a ocupar-se deles; é o nosso legado, é a lembrança de uma gesta heróica, é o símbolo de nossa vocação universalista (mesmo estando esta hoje em perigo). Sejamos orgulhosos e salvemos os padrões dos navegadores.

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