quinta-feira, 31 de outubro de 2013

É fogo que arde e vê-se bem

“É fogo que arde sem se ver, uma ferida que dói e não se sente”, dizia o poeta sobre o amor. Mas o amor que os portugueses sentem pelo Verão é sistematicamente chamuscado pelos incêndios florestais, o flagelo que ganha ali laivos de fatalidade irreversível. Nas últimas décadas, arderam em Portugal 3,5 milhões de hectares – uma área equivalente a toda a Bélgica.

É inútil repetir o óbvio, os incêndios são um drama devastador, deixando à sua passagem um rasto desolador de destruição e morte. O facto de a cada ano o ciclo se repetir deixa-nos raivosos perante a impotência. Nunca falha: chegados ao final de Julho, ouvimos as primeiras más notícias. Entrado Agosto, com a floresta seca e cheia de folhas secas, qualquer faúlha é suficiente para despoletar a habitual espiral de recursos perdidos, casas e pessoas em perigo, bombeiros no hospital (ou pior). Este ano, também a macabra novidade de uns desmiolados se vangloriarem dos seus horrendos feitos no facebook ainda antes de serem presos. Mas isso é assunto para outro local deste jornal.

O facto é que nem todos os incêndios são de origem criminosa – e também não há nenhuma inevitabilidade na sua existência, os fogos florestais não são nenhum castigo divino. Depois do Verão catastrófico de 2003 (em que arderam 425 mil hectares de floresta, um recorde absoluto), o país revoltou-se e passou a combater o problema com novos meios. Então, e apesar de uma pequena recaída em 2005, a área ardida efectivamente diminuiu; paradoxalmente, esse sucesso levou a um certo relaxamento posterior – e este ano, a situação voltou a agravar-se. Tipicamente, fez-se o mais fácil, que no caso era atirar dinheiro sobre o problema reforçando-se os meios de combate – que recebem, ano após ano, 80% das verbas destinadas à protecção da floresta. Sempre mais esquecido fica o longo prazo, que exige paciência e planeamento: limpar, gerir, prevenir, estar presente no terreno durante todo o ano, trabalhando com as populações locais – as poucas que restam num país dramaticamente macrocéfalo onde o interior está exangue, os seus filhos vivendo e trabalhando em Lisboa ou no Luxemburgo.

A prevenção dos fogos é complementar ao seu combate, e sem aquela, nem os melhores Canadair podem salvar as serras lusitanas. Por isso mesmo, a ideia (surgida originalmente em 2004) de criação de uma força especial de bombeiros dedicada exclusivamente, e durante todo o ano, ao tratamento da floresta tenha voltado agora em forma de petição lançada por especialistas da área. Mesmo os mais cépticos, que duvidam da sua exequibilidade, admitem que algo terá de mudar sob pena de continuarmos a queimar – literalmente – um dos poucos recursos naturais de um país onde eles não abundam. É que a floresta não significa apenas ar puro, turismo e piqueniques, mas também toda uma fileira industrial que, segundo os números disponíveis, vale 10% das exportações portuguesas e dezenas de milhar de postos de trabalho. Números que pouco a pouco se esvaem em fumo enquanto assistimos angustiados a mais um inferno estival.

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