“Quando alguém
nasce, nasce selvagem – não é de ninguém...” trauteavam os Resistência há uma
boa vintena de anos, sensivelmente pela mesma altura em que o exército
português me considerou apto para todo o serviço mas teve a gentileza de me
colocar na “reserva territorial”, sujeito a ser chamado para a tropa, em caso
(por exemplo) de uma invasão espanhola, a qualquer momento até completar 42
anos.
O tempo passou e
eu esqueci o meu possível compromisso com as armas, cortesia da União Europeia
e da sua oferta de paz e prosperidade entre os europeus - e se esta última tem os seus altos e
baixos, a primeira é tão sólida que um conflito armado entre dois membros da UE
é hoje impensável. Mas... será mesmo? Os recentes (e, francamente, um pouco ridículos)
espasmos nacionalistas vindos de Espanha começam a deixar-me um pouco nervoso.
Ainda me faltam uns anitos para atingir os 42 e, francamente, agora não me dava
mesmo nenhum jeito abandonar a casa, o emprego e tudo o resto e radicar-me no
quartel de Elvas aos comandos de uma chaimite.
A situação
económica em Espanha é desesperante. O desemprego oficial anda nos 27%, 1 em
cada 2 jovens não têm emprego, as casas perderam o valor que tinham, várias
regiões desejam a independência, não há crescimento económico há seis anos, e
os crimes financeiros desacreditaram totalmente a elite política e a realeza. A
estratégia do governo do país, incapaz de resolver estes problemas, é a de
criar manobras de diversão que procurem inimigos externos e apelem ao bacoco
orgulho nacionaleiro: ou seja, mais uma candidatura falhada aos jogos olímpicos
e disputas sobre rochedos perdidos. O primeiro ensaio já aconteceu em 2002, no
rochedo de Perejíl junto à costa marroquina, e aí houve mesmo um pequeno
conflito armado, com a Espanha a capturar seis prisioneiros da guarda costeira
do país árabe; no mês passado, a tensão aumentou em Gibraltar, outro rochedo periférico,
com Espanha e Reino Unido a trocarem insultos públicos e verem-se repreendidos
por Bruxelas como meninos pequenos.
Agora chegou a
vez de Portugal: a Espanha contesta as ilhas Selvagens. Não discute desta vez a
soberania – em 1911 e 1975, farejando a instabilidade momentânea em Lisboa,
procurou aglutinar as Selvagens às Canárias – mas discute o seu estatuto: em
vez de “ilhas”, deveriam ser considerados meros “rochedos”. A diferença não é
semântica, porque uma ilha confere ao país a que pertence direitos sobre o
fundo do mar e as águas até 200 milhas a partir da costa, enquanto os rochedos
apenas permitem 12 milhas – na prática, isso significa que os hipotéticos
rochedos Selvagens seriam rodeados completamente por águas espanholas.
Portugal
protegeu-se bem. As Selvagens pertencem ao Estado desde 1971, e a reserva
natural aí existente implica habitação permanente de duas pessoas (no farol,
onde também o presidente pernoitou em Julho). Além disso, existe na maior ilha
uma casa de férias de uma família madeirense. A nota diplomática de Portugal às
Nações Unidas, enviada na semana passada, é inteligente: tranquila, não valoriza
demasiado a questão, e sublinha que os dois países não têm nenhum conflito
territorial (embora as fronteiras na água não estejam definidas). Tudo está
bem, vamos continuar a ser Selvagens. E eu vou continuar tranquilamente na
reserva territorial.
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