quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O amiguinho americano

“O amigo americano” é um film noir realizado pelo alemão Wim Wenders, na altura em que este produzia obras de fôlego e não apenas postais ilustrados sobre cidades. O filme é uma adaptação de um livro policial da talentosa Patricia Highsmith, e na história há um americano a viver em Hamburgo, o cerebral e endinheirado Tom Ripley, que precisa de matar um homem e consegue convencer um alemão, Jonathan, a cometer o crime por ele. No final do filme, Jonathan morre, enquanto o seu amigo americano escapa, bem-sucedido e impune.

Com o nosso amigo americano o epílogo não será muito diferente. Sempre pressurosos em se afirmarem como estando do lado dos europeus, e atravessando o Atlântico a correr sempre que necessitam de ajuda para uma das muitas guerras em que se envolvem (e obtendo-a sempre do seu maior subordinado, o Reino Unido), os americanos espiam-nos. Vigiam os nossos mais pequenos movimentos, utilizam programas sofisticados para analisar se a mais ridícula parvoíce que escrevemos no facebook lhes interessa, podem reproduzir a mais embaraçosa conversa picante feita ao telemóvel. E fazem-no, mas não por coscuvilhice; fazem-no no mais abjecto desrespeito pela liberdade humana, na mais nojenta hipocrisia de quem caracteriza todos os outros países do mundo como inferiores e pouco democráticos. Ouvimos agora números dispersos como 70 milhões de contas de telemóvel em França (ou seja, todas) devassadas em apenas um mês; em Espanha foram 60 milhões, no Reino Unido 30 milhões, na Alemanha a própria chanceler, oriunda da Alemanha de Leste onde a espionagem a qualquer cidadão é uma chaga bem viva na memória (e na lei), teve o seu telefone sob escuta durante vários anos. E todas as nossas transferências bancárias guardadas nos servidores da SWIFT, uma empresa belga, também estão bem discriminadas algures em Washington.

Sim, o guarda-chuva da “luta contra o terrorismo” é enorme e conveniente, mas a maior razão da espionagem à Europa é económica: os EUA roubam-nos facilmente segredos industriais, comerciais, científicos, tecnológicos, financeiros. Empresas estratégicas, como por exemplo petrolíferas, são vigiadas de perto. A vantagem desleal é tão ou mais incompreensível sabendo que a UE e os EUA vão começar agora duras negociações com vista a um acordo de comércio livre entre os dois blocos – e nós entramos já em situação de completa subalternidade.

A dimensão da ignóbil espionagem é tal que mesmo os inefáveis líderes europeus se têm agora de mostrar relativamente escandalizados, batendo muito no peito e, com voz grossa, afirmando ir directamente à Casa Branca exigir explicações a Obama. Mas até agora, estes mesmos líderes eram colaboracionistas; as acções da NSA eram sobejamente conhecidas, e até mesmo parcialmente copiadas, pelos nossos serviços secretos. Os voos clandestinos da CIA tiveram o apoio logístico europeu, enquanto Snowden, o homem que nos permitiu descobrir todo estes podres, nunca obteve da Europa o asilo que requereu. Logo, as reacções ultrajadas de Merkel e Hollande são apenas para inglês ver – e o líder inglês, David Cameron, nem se preocupa em esconder o seu enfado com toda esta discussão que considera contraproducente. Afinal, que há de errado em espiar os próprios cidadãos e viver numa sociedade bigbrotheriana?

O nosso musculoso amigo americano é interesseiro e falso. Mas não podemos zangar-nos com ele – sabe tudo sobre nós, mais do que nós mesmos sabemos. Sabe, por exemplo, que não temos a firmeza de nos fazermos respeitar.

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