quinta-feira, 20 de junho de 2013

Forca sem carrasco

“Groundhog Day” (o “Feitiço do Tempo”, em português) é um filme de culto, uma pequena produção que foi já seleccionada para o Registo Nacional de Filmes dos EUA como “culturalmente relevante”: nele, o personagem principal tem a estranha experiência de ficar bloqueado no tempo, e cada dia que ele vive é exactamente igual ao anterior. Na Europa acontece-nos algo parecido: os anos passam, mas – há meia década – continuamos a viver em 1931. Os primeiros tempos a seguir ao grande crash bolsista de 1929 prolongaram e agravaram a Grande Depressão: as políticas seguidas pelos países ocidentais, a obsessão pela dívida, as falências de bancos que levaram a uma redução brutal do dinheiro em circulação  (algo defendido para controlar a inflação...) levaram ao desemprego em massa e ao desempenho das economias muito abaixo do seu potencial. A situação só começou a melhorar em 1933, com a eleição de Roosevelt e a
aplicação do “New Deal” keynesiano.

Hoje não temos um Roosevelt para eleger, e como tal, a narrativa continua a ser uma só – a da austeridade supostamente redentora. Mas há uma mudança recente no argumento deste drama à escala europeia: perante os indisfarçavelmente desastrosos efeitos das políticas negativas nas nossas economias (e nas nossas vidas), já ninguém quer ser o responsável, já não há actores para o papel do carrasco. Nas últimas duas ou três semanas, vimos o FMI a criticar a própria austeridade que impõe; Durão Barroso, presidente da Comissão (que é membro da troika), sentindo os ventos cambiantes, afirmou que tínhamos atingido “os limites da austeridade”; a chanceler Merkel, que escolheu Barroso e que o guiará a um outro futuro lucrativo cargo, imediatamente o desautorizou avisando que a austeridade era para manter; Barroso, obediente, rapidamente corrigiu o tiro e afirmou que afinal tinha sido mal interpretado, porque a austeridade estava aí para durar; oportunidade evidente para que os alemães fechassem o círculo, na semana passada, declarando que a culpa da austeridade (que eles no fundo até detestam, até porque a palavra em alemão tem conotações de “sofrimento extremo”...) era sobretudo da troika. Ou seja, de Barroso.

Em Portugal a situação enferma da mesma hipocrisia. O governo, que assinou o “programa de ajustamento” com a mesma troika, tem uma agenda económica que o leva a por vezes querer ir mais além do acordado – o que significa que um bode expiatório externo dá um imenso jeito, até porque é bem melhor impôr medidas tremendas por “não haver alternativa” do que por ser esse, como de facto é, o programa político desejado. O resultado? Uma situação de caos social; a deterioração de quase todos os indicadores económicos; a destruição do tecido económico do país, como admiravelmente exposto pelo Financial Times há apenas alguns dias. Tantos anos depois de 1931, parecia impensável ter chegado a este ponto porque parecia ilógico apostar em ideias que no fundo constituem o contrário daquilo que é necessário fazer. Mas é esse garrote, essa forca aquilo a que vamos tendo direito; e por mais que o disfarcem e neguem, os carrascos chamam-se Alemanha, BCE, Comissão e Conselho europeus, FMI, indústria financeira, organizações patronais e alguns (muitos) meios de comunicação social. Que fique para memória futura.

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