“Groundhog Day”
(o “Feitiço do Tempo”, em português) é um filme de culto, uma pequena produção
que foi já seleccionada para o Registo Nacional de Filmes dos EUA como
“culturalmente relevante”: nele, o personagem principal tem a estranha
experiência de ficar bloqueado no tempo, e cada dia que ele vive é exactamente
igual ao anterior. Na Europa acontece-nos algo parecido: os anos passam, mas –
há meia década – continuamos a viver em 1931. Os primeiros tempos a seguir ao
grande crash bolsista de 1929
prolongaram e agravaram a Grande Depressão: as políticas seguidas pelos países
ocidentais, a obsessão pela dívida, as falências de bancos que levaram a uma
redução brutal do dinheiro em circulação
(algo defendido para controlar a inflação...) levaram ao desemprego em
massa e ao desempenho das economias muito abaixo do seu potencial. A situação
só começou a melhorar em 1933, com a eleição de Roosevelt e a
aplicação do “New
Deal” keynesiano.
Hoje não temos um
Roosevelt para eleger, e como tal, a narrativa continua a ser uma só – a da
austeridade supostamente redentora. Mas há uma mudança recente no argumento
deste drama à escala europeia: perante os indisfarçavelmente desastrosos
efeitos das políticas negativas nas nossas economias (e nas nossas vidas), já
ninguém quer ser o responsável, já não há actores para o papel do carrasco. Nas
últimas duas ou três semanas, vimos o FMI a criticar a própria austeridade que
impõe; Durão Barroso, presidente da Comissão (que é membro da troika), sentindo
os ventos cambiantes, afirmou que tínhamos atingido “os limites da
austeridade”; a chanceler Merkel, que escolheu Barroso e que o guiará a um outro
futuro lucrativo cargo, imediatamente o desautorizou avisando que a austeridade
era para manter; Barroso, obediente, rapidamente corrigiu o tiro e afirmou que
afinal tinha sido mal interpretado, porque a austeridade estava aí para durar;
oportunidade evidente para que os alemães fechassem o círculo, na semana
passada, declarando que a culpa da austeridade (que eles no fundo até detestam,
até porque a palavra em alemão tem conotações de “sofrimento extremo”...) era
sobretudo da troika. Ou seja, de
Barroso.
Em
Portugal a situação enferma da mesma hipocrisia. O governo, que assinou o
“programa de ajustamento” com a mesma troika,
tem uma agenda económica que o leva a por vezes querer ir mais além do acordado
– o que significa que um bode expiatório externo dá um imenso jeito, até porque
é bem melhor impôr medidas tremendas por “não haver alternativa” do que por ser
esse, como de facto é, o programa político desejado. O resultado? Uma situação
de caos social; a deterioração de quase todos os indicadores económicos; a
destruição do tecido económico do país, como admiravelmente exposto pelo
Financial Times há apenas alguns dias. Tantos anos depois de 1931, parecia
impensável ter chegado a este ponto porque parecia ilógico apostar em ideias
que no fundo constituem o contrário daquilo que é necessário fazer. Mas é esse
garrote, essa forca aquilo a que vamos tendo direito; e por mais que o
disfarcem e neguem, os carrascos chamam-se Alemanha, BCE, Comissão e Conselho
europeus, FMI, indústria financeira, organizações patronais e alguns (muitos)
meios de comunicação social. Que fique para memória futura.
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