domingo, 21 de novembro de 2010

Vão-se os dedos, ficam os anéis

Muito se tem discutido sobre o estado de espírito “pessimista” que se vive actualmente (ou seja, mais do que de costume) em Portugal. Também se têm adicionado outros adjectivos: miserabilista, revoltado, apocalíptico… da minha parte, penso que a melhor descrição para o país ainda é “surrealista”. De facto, não tenho melhor forma de classificar a reiterada intenção de prosseguir com a construção de um novo aeroporto para Lisboa e de uma linha TGV Lisboa-Madrid ao mesmo tempo que o Estado em tudo corta e de quase todas as funções se parece demitir.

Não há heróis nesta história, só vilões. O actual Governo português chegou a um acordo com o maior partido da oposição de forma a viabilizar no parlamento do país o orçamento de Estado para 2011. A proposta de orçamento é nitidamente draconiana, incluindo mais um aumento de impostos – nomeadamente do IVA, mas também eliminando muitas deduções fiscais em sede de IRS – e um princípio de desmantelamento do Estado social “de estilo europeu” construído em Portugal durante o regime democrático. O maior partido da oposição obteve algumas concessões governamentais para “suavizar” os efeitos drásticos do documento na vida das empresas e famílias – por exemplo, aplicando os limites a deduções fiscais apenas aos rendimentos mais altos (não deixando de ser curioso que seja um partido de centro-direita, o PSD, a exigi-lo a um partido supostamente de centro-esquerda, o PS).

Mas estas alterações são cosmética. Chegados à questão das famigeradas parcerias público-privadas (PPP) em que o Estado arca com o risco e com grande parte do investimento de um grande projecto enquanto os privados o constroem fisicamente, abocanhando todos os proveitos futuros, os dois grandes partidos preferiram continuar a satisfazer os grandes consórcios de obras públicas: já a partir de 2014 disparam os encargos com a dívida necessária para pagar novas autoestradas no interior e sobretudo um aeroporto e uma linha de TGV que são luxos incomportáveis e cuja construção ainda é evitável, mas sem que ninguém pareça ter juízo para a deter.

Mesmo no Reino Unido, um país certamente menos empobrecido que Portugal mas com uma infraestrutura de transportes incapaz, a construção de uma linha de alta velocidade que ligaria Londres a Birmingham (300 km) vai ser abandonada na conjuntura actual, dado que por cada euro investido só há um retorno de dois euros (uma autoestrada retornaria seis). Na Grécia, um país em situação económica similar à portuguesa, chega-se a considerar a venda desesperada de ilhas para poder fazer face à dívida. Em Portugal, país descrito por um antigo primeiro-ministro (e actual presidente da Comissão Europeia) como estando “de tanga”, reduzem-se salários já de si baixos, fecham-se escolas e hospitais, encolhe-se o consumo e a economia… mas continuam a planear-se obras faraónicas centradas em Lisboa. Mais do que de tanga, estas elites políticas só podem é estar na tanga.

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