domingo, 21 de novembro de 2010

Choque e temor



No seu livro de 2007 “Doutrina de Choque: a ascensão do capitalismo de desastre”, a canadiana Naomi Klein atira para cima do economista Milton Friedman e dos seus “Chicago boys” a grande responsabilidade para muitos dos males da globalização, acusando-os de procurarem impor a sua agenda económica ultraliberal aproveitando desastres naturais ou graves crises provocadas pelo homem – como guerras, por exemplo. Aproveitando um período de tempo relativamente curto em que as populações estão ainda em estado de choque e em temor pelo futuro próximo (shock and awe), os neoconservadores aplicam a sua receita, imutável qualquer que seja a situação: equilíbrio imediato dos orçamentos a todo o custo, redução sistemática do papel e peso do Estado na economia, desregulação total dos mercados, a começar pelo financeiro... as mesmas políticas que contribuíram directamente para o quase colapso do sistema financeiro mundial em 2008, portanto. A festa foi de arromba e a conta continua, pouco a pouco, a chegar para ser paga: a Irlanda acaba de anunciar que o seu Estado, outrora tão orgulhoso dos impostos reduzidos para empresas, vai salvar o Anglo Irish Bank da falência com fundos públicos – o que significa que o défice deste ano vai provavelmente atingir uns inacreditáveis 32% do PIB do país. Voltar ao equilíbrio vai ali exigir muito mais que “austeridade”, a palavra-chave de 2010 que muitas vezes apenas mascara uma outra: “declínio”.

Na quarta-feira, milhares de pessoas, impelidas por sindicatos de toda a Europa, convergiram em Bruxelas para declararem que não estão (ainda) tão em estado de choque para que não possam protestar contra as medidas de austeridade extrema que governos de toda a UE, com o português à cabeça, estão a anunciar. Os cerca de 80000 manifestantes insurgiam-se contra serem mais uma vez os mesmos – classe média, funcionários públicos, assalariados, pensionistas, menores de idade – a pagar por uma crise que não pediram nem criaram. O temor, por seu lado, é que políticas marcadamente restritivas vão provocar o “duplo mergulho” – uma nova recessão, quando a retoma era ainda muito frágil ou nem tinha ainda chegado a muitos países. Este é um círculo vicioso particularmente corrosivo: cortes na despesa provocam uma quebra imediata na procura e uma subida do desemprego (23 milhões de empregos perdidos na Europa desde o início da crise); tal provoca uma subida dos gastos com prestações sociais (como o subsídio de desemprego) ao mesmo tempo que trava a actividade económica, o que por sua vez vai reduzir o montante de impostos arrecadado pelo Estado; ou seja, os défices públicos ainda sobem mais, exigindo nova “austeridade”, o que vai recomeçar o círculo.

O choque está aí, o temor (pelo futuro) também. Sim, reformas dolorosas são cruciais para restaurar a confiança nos mercados e a solidez das instituições. Mas cortar, cortar e cortar indiscriminadamente é, neste momento, o pior que os governos europeus poderiam fazer. Arriscamo-nos a viver uma longa noite de “austeridade” provocada por opções erradas.

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