quarta-feira, 16 de junho de 2010

O improvável dueto belga

Um cartoon do desenhador Kroll publicado na própria noite das eleições de domingo na Bélgica resumia em parte o espírito que se vive no país. Ao contrário dos desenhos habituais, a cena está claramente dividida em duas partes, com um traço grosso a meio; do lado esquerdo, alguém se agarra às pernas do magríssimo Elio di Rupo, líder do PS francófono que venceu as eleições na Valónia, e diz “Socorro, Elio! Contamos contigo!”. Do lado direito, os personagens incentivam um homem com uma barriga enorme, Bart De Wever, líder dos nacionalistas flamengos do N-VA: “Vamos lá, Bart! Contamos contigo!”. Os dois lados esperam dos seus campeões algo de completamente oposto.
Di Rupo é uma espécie de última esperança de salvar a Bélgica da forma que ela actualmente (não) funciona, de manter as “linhas vermelhas” das quais os valões não querem abdicar: manutenção da segurança social, da fiscalidade (que é a mais pesada do mundo sobre o trabalho), dos direitos linguísticos das minorias à volta de Bruxelas.
De Wever é o terramoto político que sacode as águas e foi eleito por quase 30% dos flamengos para… acabar com a Bélgica. O N-VA foi criado em 2001 e, em apenas nove anos e três eleições federais, tornou-se o partido mais votado no país; o seu objectivo central é a secessão pacífica da Flandres e a sua independência dentro de uma Europa unida. No domingo, os líderes valões apressaram-se a relembrar que “70% dos flamengos não votaram em De Wever”. Mas a mensagem do eleitorado flamengo é clara – estamos fartos, dizem; é preciso reformar o país, e/ou acabar com ele. De Wever falou mesmo em “dois países que devem agora encontrar um acordo”. E tal não pareceu um lapso linguístico. Do outro lado, ripostou-se: “Se a Flandres sair, a Valónia juntar-se-á ao Luxemburgo!”.
O problema da Bélgica está aqui reflectido: não há uma democracia, mas duas; o eleitorado francófono está na fase da negação e vota nos socialistas francófonos, símbolos de um (insustentável) Estado-providência, numa tentativa de manter o status quo; do outro lado do ringue, o eleitorado flamengo escolhe tudo mudar, tomando decisões unilaterais e, se necessário – e a possibilidade torna-se cada vez mais real – desfazendo o país. O vastíssimo campo central do consenso e da negociação está abandonado, não porque falte bom-senso, mas porque ele teve muito tempo para agir – e falhou. A Bélgica está bloqueada há demasiado tempo, enredada nas suas contradições internas; agora, este duo de perfeitos opostos, o magro socialista francófono e o gordo nacionalista flamengo, são a estranha proposta para desbloquear o(s) país(es).
Afinal, há uma dívida federal de 99% do PIB a pagar pelas gerações futuras, há uma dívida regional de mais um terço deste valor, há uma crise económica europeia e mundial para combater, há um mundo em constante mudança. E sobre tudo isto, na campanha belga não se ouviu nem uma palavra.

Sem comentários:

Enviar um comentário