terça-feira, 11 de setembro de 2012

Morto a 4 de Julho


Não sou eu quem vai negar que os cínicos se sentem à vontade na política, mas por vezes esta também permite que a democracia representativa puxe dos seus galões, as elites decidam dar ouvidos aos cidadãos e os interesses destes prevaleçam sobre a ganância corporativa. Não acontece muitas vezes – e como tal, quando acontece, merece ser realçado.

A 4 de Julho, data mítica da independência dos Estados Unidos da América, o Parlamento Europeu reuniu-se em Estrasburgo pela última vez antes das férias de verão e fechou a época em beleza, ferindo de morte o acordo de comércio anti-contrafacção (ACTA, na famigerada sigla em inglês). O voto do hemiciclo europeu foi tão esmagador (478 votos contra, apenas 39 a favor, e 165 abstenções) quanto certeiro; Vital Moreira, o cabeça de lista socialista que no PE tem servido como verdadeiro testa-de-ferro das grandes corporações e obteve a duvidosa honra de ser o único deputado em toda a metade esquerda da sala (bem como o único de todos os deputados portugueses) a votar a favor, admitiu-o: "este acordo, neste formato, está morto".

O monstro que caiu trespassado a 4 de Julho era uma lei negociada às escondidas nos últimos meses por obscuros políticos e agentes não eleitos que trabalham para defender os interesses não dos eleitores, não dos cidadãos, mas sim das grandes multinacionais. Uma lei ratificada em tempo recorde - para que ninguém tivesse tempo para sequer se aperceber do que estava a acontecer, quanto mais para protestar - por quase todos os países ocidentais, entre eles 22 europeus; uma lei redigida em termos propositadamente vagos para que o poder discricionário da repressão fosse ainda mais vasto. Disfarçado de "acordo de comércio", coberto com uma fina camada de "anti-contrafacção" (para que a Europa, detentora da maior fatia de propriedade intelectual do mundo, engolisse melhor a pílula), o ACTA servia como (mais) um instrumento poderoso para retirar direitos a cada um de nós e atirá-los para o confortável regaço de governos sem rosto e corporações sem escrúpulos. O texto tencionava transformar os fornecedores de acesso à internet em polícias da rede, responsáveis por tudo o que nela aparecesse - e prontos a cortar o acesso, sem recurso possível, a quem eles bem entendessem. As indústrias musical e filmográfica passariam a ter a última palavra sobre tudo o que pode circular na net; a indústria farmacêutica, não satisfeita com o seu nível obsceno de lucros, poderia impedir o acesso dos mais necessitados a medicamentos genéricos, e a indústria agro-alimentar poderia cortar a utilização de muitas sementes "patenteadas", o que lhe daria um efectivo controlo sobre as colheitas e a cadeia alimentar.

A beleza poética é que a espada que derrotou este monstro foi espetada pela única instituição europeia directamente eleita pelos cidadãos, os mesmos que endereçaram sete petições ao PE - uma delas reunindo uns absolutamente impressionantes 2,8 milhões de assinaturas - exigindo a rejeição do ACTA em nome dos direitos humanos e da liberdade de expressão. Sim, esta batalha foi ganha, mas o império contra-ataca: nos EUA já há uma nova tentativa da indústria, chamada IPAA, a ser empurrada para os comités do Congresso antes que alguém repare; na Rússia, há apenas uma semana, foi aprovada uma lei que permite ao governo fechar qualquer sítio web dissidente. E na Europa, o fantasma do ACTA também regressará, fatalmente. Não baixemos a guarda.

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