terça-feira, 11 de setembro de 2012

A RTP já não existe e ainda ninguém a avisou


A silly season de Agosto em Portugal tem três assuntos incontornáveis: incêndios, férias e a nova época futebolística. É adequado, porque em geral está calor e o cérebro merece descanso das preocupações trazidas pela política ou pela economia (ou melhor dito, por ambas). O governo do país aproveitou a distracção geral para lançar a discussão sobre um problema que urge resolver, lançando assim a guerra que está apenas a começar em nome do conceito - tão sacrossanto quanto mítico - do "serviço público de televisão".

O conflito acontece porque mais uma vez alguém tenta tocar na vaca sagrada chamada RTP - e quando tal sucede este lóbi, poderosíssimo no país, mobiliza todas as forças para morder quem ousou perturbar o seu sono profundo. Historicamente, a gigantesca empresa sai sempre vencedora destes braços-de-ferro, por vezes mesmo reforçada no seu rico imobilismo, e nada leva a crer que será diferente desta vez - até porque a carta ideológica foi imediatamente jogada, com todos os partidos à esquerda do centro político a saltarem a terreiro para defender o tal ideal mítico - que erroneamente, mas não por acaso, confundem com a velha empresa.

Não tem de ser assim. Sobretudo, não deveria ser assim. Olhemos de frente alguns factos: nos últimos dez anos, a RTP teve um prejuízo acumulado de 3770 milhões de euros. Para ajudar a medir a brutalidade de tal montante - suportado pelos contribuintes portugueses e europeus - consideremos outros dois valores ao acaso: no novo hospital de Barcelos, de média dimensão, foram investidos 50 milhões; e os custos dos mais caros filmes produzidos no país rondam o milhão de euros. Grosso modo, poderíamos afirmar que em vez de pagar a José Carlos Malato e outras pseudo-estrelas salários principescos de 28 mil euros por mês (4 vezes o do presidente da República), o Estado português poderia ter construído na última década 75 hospitais. Ou financiado 3770 filmes para promover a nossa cultura. Ou ainda construído uma rede de comboios rápidos para servir todas as cidades do território, ficassem elas no interior ou no litoral.

O que obtemos nós, cidadãos, por tanto dinheiro? Exactamente o mesmo que nos canais dos botõezinhos do telecomando mesmo ao lado: os mesmos concursos alarves, telenovelas, touradas, o mesmo entretenimento contínuo e embrutecedor, o mesmo jornalismo sensacionalista - só que com ainda menos profissionalismo ou isenção, seja esta política ou desportiva. "Serviço público" não é o telelixo; seria sim produção própria (de documentários ou investigação, não de novelas), uma defesa coerente da língua portuguesa, uma preocupação com a qualidade, a diversidade e os públicos minoritários (em vez da ditadura das audiências); algo como a RTP2, com um orçamento low cost, consegue raramente ser. E também - em vez de uma RTP Internacional que, na sua ideologia salazarenta, mostra ao mundo um Portugal de "quatro paredes caiadas" (em) que nenhum português (se) deseja ver ou rever - uma difusão para a diáspora portuguesa do melhor que se faz em televisão no país, viesse de que canal viesse. Mas não temos nada disto.

No fundo, a relevância da RTP terminou simbolicamente no dia em que o sinal televisivo foi aberto à concorrência, há vinte anos. Hoje, com audiências que não chegam a um décimo das de 1986, perante uma geração que olha muito mais para o ecrã do computador que para o televisor, se a RTP desaparecesse de um dia para o outro poucos se lembrariam dos seus canais ao fim de um mês; em certido sentido, na filosofia absolutista do "tudo para toda a gente" com que foi criada, já não existe há muito. Só ainda não se apercebeu que não passa de um espectro.

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