terça-feira, 5 de abril de 2016

O embaraçoso amigo turco


29 de Maio de 1453 é um dia que viverá para sempre na parte sombria da História cristã e, porque não dizê-lo, europeia. Foi o dia em que Constantinopla caiu, após um cerco de 53 dias, nas mãos do sultão otomano Mehmet (então um jovem de 21 anos). Foi a perda que significou fim o do império Romano, após quase 15 séculos de existência.

Há um novo sultão na Turquia, um país extraordinário em muitos aspectos mas assustador, na ausência de um Estado de Direito, em tantos outros. Erdogan, o todo-poderoso líder do partido (islamista) da Justiça e do Desenvolvimento, resiste no poder há 13 anos à cabeça de um aparelho que se auto-perpetua enquanto reprime e bombardeia parte da sua própria população (curda). O regime turco vai perseguindo e desmantelando os meios de comunicação social que ainda não lhe tecem loas encantadas, como acaba de fazer com o jornal mais lido do país, o Zaman – invadido e saneado, os seus jornalistas despedidos e acusados de assédio sexual, artigos apagados dos arquivos, e o “novo” jornal coberto de gloriosas fotos de Erdogan e de como a Europa se verga perante o estadista.

E o pior é que neste último ponto estão certos. Nós, europeus, não queremos acolher as vagas de refugiados que batem às nossas portas. Nós, europeus, também não sabemos como resolver o problema, não sabemos como estancar essas mesmas vagas, não diremos como a América de outros tempos “Dai-me os vossos fatigados, os vossos pobres, as vossas massas ansiosas por respirar livremente” (o poema na base da estátua da Liberdade, da autoria da luso-americana Emma Lazarus). Decidimos subcontratar o trabalho duro a outrem, e para o fazer vimo-nos de repente a negociar, e ceder, perante o autocrata de um país vigiado e inseguro.

A Europa convenceu a Turquia – através de miraculosas promessas e generosos pagamentos (6 biliões de euros…) – a servir de zona-tampão para filtrar as dezenas de milhar de sírios, iraquianos ou afegãos que todos os meses chegam às margens do Mediterrâneo. Cada refugiado saído da Turquia que conseguir chegar à Grécia de forma “irregular” será reenviado à Turquia, que em troca enviará um refugiado presente no país para a Europa, já de forma “regular”, até um máximo de 72 000 pessoas (a partir daí os europeus só aceitam mais refugiados se quiserem).

O acordo é muito frágil no plano legal (para ser suave). Pressupõe que a Grécia vai processar todos os indivíduos que ali chegarem, o que será tarefa hercúlea; pressupõe também que a Turquia seja considerada “país seguro de reenvio”, algo que manifestamente não é (nem assim é reconhecida por nenhum país da UE, tirando a Grécia, que é obrigada a fazê-lo). Depois, em termos práticos, um acordo que aceita 72 000 sírios, quando há neste momento 2,7 milhões refugiados na Turquia, não lhes oferece uma perspectiva suficientemente animadora. Ou seja, os sírios (e os restantes) continuarão a arriscar a vida pelo mar; e não será necessário esperar muito para que tal se torne evidente.

Mas o pior falhanço deste acordo não é legal, nem sequer prático, mas sim moral. Demitindo-se das suas obrigações e responsabilidades, os líderes europeus estão dispostos a pagar bem, a contornar o direito internacional e, sobretudo, a satisfazer as vontades de um governante insalubre, tudo para evitarem sujar as mãos acolhendo refugiados. A Europa fundou-se sobre valores éticos profundos, de respeito pela igualdade e dignidade humanas, da democracia e do Estado de Direito. Hoje em dia, atemorizada, prefere esconder-se atrás da ilusão de uma empresa de segurança colocada à porta. Uma das coisas que aprendemos na semana passada: não são os refugiados que devemos temer. Eles fogem precisamente de terror como aquele sentido em Bruxelas.

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