terça-feira, 8 de março de 2016

Sabotar por dentro


“Deixe-me explicar-lhe algo, senhor ministro”, diz com ar divertido o funcionário público. “Estamos determinados a fazer tudo o que seja necessário para que a Comunidade Europeia não funcione; tentámos sabotá-la a partir de fora, mas não estava a resultar, por isso entrámos e agora sabotamos a partir de dentro. Dividir para reinar. Porque haveríamos de mudar a nossa política centenária, que tem funcionado às mil maravilhas?”

“Sim, senhor ministro”, como produto inteligente que é, resiste muito bem à passagem do tempo – mais até, a série da BBC continua actualíssima em muitos aspectos, e isto passados mais de 35 anos. O Reino Unido, ou para ser mais preciso, a Inglaterra continuam hoje a ter esta relação de amor-ódio com a Europa, e para ser ainda mais preciso, a relação oscila entre o puro interesse (comercial, financeiro, económico) e o ódio desabrido, porque amor, se existe, é muito pouco perceptível. E é precisamente a falta de amor o drama da situação actual.

Em Junho os eleitores britânicos vão ser chamados a uma tomar uma decisão enorme, um veredicto que, sem qualquer tipo de exagero, vai definir o curso da História. E não apenas dentro do próprio país – o resultado do referendo sobre a permanência na União Europeia vai também moldar o futuro desta, e em parte, do mundo inteiro. A decisão não vai ser discutida no plano da racionalidade. As organizações empresariais vão aconselhar o voto no “sim” (permanência na União) argumentando com os efeitos nefastos que uma saída traria aos números do emprego, do crescimento económico e das exportações. Os grandes partidos políticos tradicionais, desde o Labour aos próprios conservadores passando pelos liberais-democratas, vão de forma mais ou menos sincera apelar ao voto no “sim”, alegando a segurança, a posição geopolítica ou a capacidade de atrair investimento, todas potenciadas pela pertença à UE. Os analistas financeiros, receosos pela incerteza e já avisados pela queda da libra durante estes primeiros dias pós-acordo, vão aconselhar ao voto no “sim”. Os aliados norte-americanos já avisaram que a sua “relação especial” com o Reino Unido seria menos especial com o país isolado da Europa.

São tudo argumentos fortes e sólidos, que provavelmente inclinarão muitas pessoas a votar pela permanência. Mas o resultado final do referendo vai jogar-se num campo muito menos racional: grandes questões complexas, multifacetadas e de tantas implicações futuras que se tornam impossíveis de abarcar pelo mais bem informado dos cidadãos foram repentinamente reduzidas à simplificação máxima. Sim ou não? Branco ou preto? Dentro ou fora? Não há lugar a ponderação nem razoabilidade. O que significa que as emoções viscerais vão desempenhar um papel fortíssimo; o “amor” pela Union Jack, a nostalgia pelo império perdido, a repulsa por um imaginado ataque aos valores tradicionais da “old England” consubstanciado numa suposta fúria normalizadora e burocratizante de “Bruxelas”, e tantas outras questões sentidas pelas entranhas de cada súbdito de Sua Majestade e agitadas regularmente pela imprensa tablóide vão, muitas vezes, levar a melhor sobre previsões económicas feitas por peritos em quem, afinal de contas, o público confia cada vez menos.

Por razões mesquinhas de pura política partidária interna – para ganhar espaço eleitoral dentro de um partido conservador cada vez mais extremista –, David Cameron inventou um facto político que pensava ter sob controlo mas que na verdade pode muito bem terminar com um “não”, enviando repentinamente o país para um limbo económico e político (pois nessa altura a Escócia quererá separar-se do RU), ao mesmo tempo que enterra a UE num círculo vicioso de egoísmos e separatismos. Chama-se a isto brincar com o fogo. Daqui sairemos pelo menos chamuscados, talvez mesmo queimados.

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