terça-feira, 8 de março de 2016

Em Roma, sê puritano


Quando, em Julho do ano passado, as potências mundiais (Alemanha, França, Reino Unido e Federica Mogherini pela Europa, mais os EUA, a Rússia e a China) se sentaram à mesa com o Irão para lhe declarar que estavam convencidas que o país não estava a tentar fabricar bombas nucleares, abrindo o caminho para o levantamento das sanções internacionais (estas terminaram formalmente há duas semanas), quase pudemos ouvir o som de milhares de caixas registadoras abrindo, em uníssono, por todo o Ocidente. É que a antiga Pérsia tinha espartilhado o seu potencial económico, mas o seu regresso ao concerto financeiro internacional vai gerar uma cascata de dinheiro. O país está sentado em cima das maiores reservas mundiais de gás natural e a sua produção petrolífera está também entre as maiores do planeta, tendo a capacidade de inundar o mercado global com petróleo barato. Mesmo cálculos cautelosos dos efeitos do final do embargo ao Irão preveem uma bonança tanto interna como externa, apontando para o crescimento do PIB do país logo em 5% este ano. E os seus 80 milhões de habitantes são um novo mercado potencial interessantíssimo para escoar todos aqueles produtos europeus que fabricamos e sem os quais a nossa vida consumista não pareceria possível.

Está explicado porque uma visita de Estado do presidente iraniano Rouhani a Itália e França deixou os serviços protocolares de cabeça à banda com tanta sofreguidão em agradar aos futuros parceiros de negócio. Em Roma, estavam em cima da mesa contratos que poderiam valer à Itália 17 mil milhões de euros, o que é significativo. A tal ponto que algum assessor mais zeloso entrou em pânico com tantas estátuas nuas no percurso do presidente e decidiu escondê-las atrás de biombos, repetindo a idiotice de Volterra, cinco séculos antes.

Volterra era um pintor italiano do século XVI contratado para tapar as partes pudendas dos nus pintados na Capela Sistina – já nesse tempo outro assessor tinha convencido o papa Paulo III que aquelas pinturas “eram mais apropriadas para uns banhos públicos ou uma taverna do que para uma capela papal”. Pelo meio das pernas dos personagens de Michalengelo, Volterra sobrepôs vestimentas coloridas e folhas de figueira, o que lhe granjeou o ridículo ainda em vida e para todo o sempre. A ele, pintor, mas também à hipocrisia anti-humanista da sociedade (Volterra era apenas o executor de uma ordem superior, no Concílio de Trento a Igreja Católica tinha acabado de decretar a proibição da nudez na arte).

Desde 1565 a Europa, e com ela a Humanidade, aprendeu muito, evoluiu muito, cresceu muito. Mas a impressão que temos presentemente é de regressão – e mais do que regressão, é de um verdadeiro desmoronamento de que falamos quando olhamos para os valores que nos definem a serem imolados no altar do deus-dinheiro. O problema é que quando começamos a triturar um dos nossos princípios, a calçada torna-se extremamente escorregadia – e rapidamente fazemos o mesmo com todos os outros. Não admira assim que na Europa dos nossos dias, a tolerância e a compaixão soem a palavras vãs em breve atiradas para o mesmo caixote onde jaz a solidariedade. Agora também já estão a caminho o laicismo, a liberdade, a própria alegria de estar vivo.

“Valeu a pena, para evitar ofender o presidente iraniano, que nos ofendêssemos a nós mesmos?”, questionou o melhor jornal de Itália, “La Repubblica”. Mas a pergunta era retórica. Ao cobrir as estátuas, parte da nossa cultura, da nossa História e do nosso ethos, a Itália cobriu-nos de vergonha. E tudo só para conseguir segurar um cliente.

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