terça-feira, 8 de março de 2016

Só mais uma nuvem negra


A esta hora, o leitor só pode estar a pensar em férias. Uff, e como são merecidas as férias deste ano. O mundo anda um lugar perigoso, e viver tem-se tornado um verdadeiro percurso do combatente; entre o volume de trabalho sempre crescente, o poder de compra decrescente, as catástrofes naturais e as crises que se multiplicam, está mesmo na hora de desligar do mundo por uns dias em favor de umas areias douradas e o proverbial céu despejado de nuvens. Mas…

Há neste momento cinco tempestades externas que se abatem sobre a Europa, e os nossos líderes políticos revelam-se perfeitamente incapazes de solucionar uma única. Obviamente, existe a Grécia; tragicamente, há uma crise migratória (sobretudo) no Mediterrâneo; a Rússia é um parceiro imprevisível e com desejos expansionistas; o ISIS, ou “Estado Islâmico”, ameaça-nos de longe; e o crash bolsista na China levanta um enorme ponto de interrogação sobre a economia mundial dos próximos tempos. 

Isto representa uma lista de tarefas de respeito, mas ao invés de atacar estes problemas, os políticos europeus preferiram dar mais um empurrão ao Tratado Transatlântico, absolutamente indiferentes às preocupações de muitos cidadãos. O auge da tensão na crise grega, com o primeiro-ministro Tsipras a passar por Estrasburgo e o belga Guy Verhofstadt a gritar-lhe alto e bom som para YouTube ver, proporcionou a oportunidade perfeita para aprovar tudo por baixo da mesa, sem que ninguém reparasse. E foi assim que, após dois milhões e meio de europeus terem assinado uma petição que pedia explicitamente o bloqueio do acordo de livre comércio com os Estados Unidos, e após um longo processo de despertar de consciências individuais para os perigos que se escondem num documento que vai afectar irremediavelmente toda a nossa forma de vida… o texto final que contém a posição europeia nas negociações ignora quase todas essas preocupações legítimas.

A Europa não vai tentar defender os seus sistemas de saúde públicos. Não vai procurar restringir as profissões envolvidas no acordo àquelas menos vulneráveis. Não vai lutar contra o baixar dos seus padrões de qualidade, quase sempre mais altos que nos EUA. Não vai sequer mencionar o dumping social (destruir ainda mais as leis do trabalho para tentar atrair investimento). Não vai incluir os seus próprios objectivos de combate às alterações climáticas. Não vai tornar públicos os textos das negociações. Nem sequer vai tentar livrar-se do frango “lavado” com dióxido de cloro, prática corrente nos EUA mas proibida aqui em 1990 por se tratar de um produto potencialmente cancerígeno!

Cereja no topo do bolo, e mesmo após os enormes esforços dos partidos na parte esquerda do hemiciclo para pelo menos retirar do acordo os ISDS (tribunais especiais que dão poder supremo às multinacionais, por exemplo a uma tabaqueira que queira processar um Estado que adopte políticas antitabagistas, como já aconteceu), a maioria de direita acabou por até isso aprovar (apenas alterando-lhes o nome). A posição de negociação europeia no TTIP já significaria o fim dos restos de democracia em que hoje vivemos; o resultado final será certamente pior. O pouco poder que ainda não estava nas mãos das corporações lá chegará finalmente, e isto em nome de um acordo que, segundo os seus próprios defensores, não trará nenhuns efeitos ao crescimento económico.

Era a nuvem negra que faltava. Boas férias.

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