terça-feira, 8 de março de 2016

O Cálice de Fogo


Em “Harry Potter e o Cálice de Fogo”, a escritora inglesa Jo Rowling desenvolve o sistema de personagens da sua série de ficção adolescente criada e largamente inspirada em elementos da cidade do Porto (onde Rowling vivia, teve uma filha e escreveu grande parte do primeiro volume da série, quando era ainda uma professora anónima e infeliz).


No livro, o fogo do título refere-se a um elemento místico, misterioso, insondável. Mas na vida real é frequente que o fogo nos recorde que ainda não está domado, demonstrando o seu lado implacável e voraz. Assim aconteceu há uma semana em São Paulo, quando um rápido incêndio destruiu o Museu da Língua Portuguesa. Um museu que, talvez mesmo sem o saber, todos nós partilhávamos. Um lugar de celebração deste nosso bem tão precioso, mas também de comunhão entre todos aqueles que temos a sorte de a falar, e de reverência para os mais dignos vultos que a elevaram aos píncaros, a ela, língua portuguesa, a quem Pessoa - objecto de uma magnífica retrospectiva no museu, ainda em 2010 - chamava poética e (também) amargamente "a minha pátria".

São Paulo, a maior cidade no mundo a falar português (com perto de 20 milhões de habitantes na sua área metropolitana, é também a mais populosa do continente americano e de todo o hemisfério sul), não é virgem nestes desastres culturais provocados pelo fogo – três outros locais importantes sofreram incêndios nos últimos anos, expondo falhas profundas ao nível da vigilância e do combate às chamas. Mas ver desaparecer o Museu da Língua Portuguesa é uma espinha cravada mais fundo, e desde logo pela beleza do edifício: construído no início do século XX, a imponente Estação da Luz tinha como missão centralizar os comboios da grande cidade – e o museu simbolizava a sua recuperação depois de meio século de decadência, iniciada por outro incêndio em 1946…

Este museu era diferente. As suas colecções eram interactivas, evolutivas, brincalhonas; ao invés de adoptar o tom sério e professoral com que tantas vezes, e sobretudo pelos portugueses, se ensina e se “vende” o português, o MLP celebrava a diversidade das diferentes versões, sotaques e utilizações da língua, procurando chamar a atenção para aspectos menos conhecidos da sua origem bem como da actualidade. Nunca se tinha feito um museu assim, voltado para a língua. Os brasileiros médios encontravam ali um enquadramento orgulhoso para este património que, mal ou bem, são os únicos a defender por esse mundo fora, quase sem ajuda dos portugueses; os portugueses saíam do museu com uma inconfundível sensação mista de orgulho e inveja, esta última por não terem sabido criar um espaço minimamente comparável; e mesmo quem não fala português ficava entretido com a sua sonoridade extraordinária e o seu lado lúdico passível de ser ali explorado, sem escusada reverência. Isso traduzia-se em ter Camões a partilhar a “praça da língua” com Chico Buarque, ou ver a cronologia de uma língua que parte de elementos do latim e do etrusco antigo até ser moldada pelas rimas de um rapper paulista, por exemplo.

Curiosamente, na saga de Harry Potter (bem traduzida para português, felizmente), ao livro sobre um “cálice de fogo” seguiu-se um livro sobre “a Ordem da Fénix”. E é exactamente uma fénix aquilo em que o museu se pode tornar, renascido das cinzas e tornado ainda mais forte. Devido à natureza interactiva e contemporânea do museu, todo o seu acervo estava já digitalizado e pode ser recuperado – ou seja, existe o proverbial backup. As perdas são sobretudo arquitectónicas, mas mesmo aí os poderes públicos brasileiros já garantiram a reconstrução do edifício (e o novo governo português, pela voz do ministro da Cultura, já prometeu apoio “no que puder”). A língua portuguesa merece-o, e nós, os seus utilizadores, os seus amantes, também; afinal, estamos cansados dos maus tratos que quotidianamente lhe são infligidos. Até pelo fogo!

Sem comentários:

Enviar um comentário