Em “Harry Potter e
o Cálice de Fogo”, a escritora inglesa Jo Rowling desenvolve o sistema de
personagens da sua série de ficção adolescente criada e largamente inspirada em
elementos da cidade do Porto (onde Rowling vivia, teve uma filha e escreveu
grande parte do primeiro volume da série, quando era ainda uma professora
anónima e infeliz).
No livro, o fogo do
título refere-se a um elemento místico, misterioso, insondável. Mas na vida
real é frequente que o fogo nos recorde que ainda não está domado, demonstrando
o seu lado implacável e voraz. Assim aconteceu há uma semana em São Paulo,
quando um rápido incêndio destruiu o Museu da Língua Portuguesa. Um museu que,
talvez mesmo sem o saber, todos nós partilhávamos. Um lugar de celebração deste
nosso bem tão precioso, mas também de comunhão entre todos aqueles que temos a
sorte de a falar, e de reverência para os mais dignos vultos que a elevaram aos
píncaros, a ela, língua portuguesa, a quem Pessoa - objecto de uma magnífica
retrospectiva no museu, ainda em 2010 - chamava poética e (também) amargamente
"a minha pátria".
São Paulo, a maior
cidade no mundo a falar português (com perto de 20 milhões de habitantes na sua
área metropolitana, é também a mais populosa do continente americano e de todo
o hemisfério sul), não é virgem nestes desastres culturais provocados pelo fogo
– três outros locais importantes sofreram incêndios nos últimos anos, expondo
falhas profundas ao nível da vigilância e do combate às chamas. Mas ver
desaparecer o Museu da Língua Portuguesa é uma espinha cravada mais fundo, e
desde logo pela beleza do edifício: construído no início do século XX, a
imponente Estação da Luz tinha como missão centralizar os comboios da grande
cidade – e o museu simbolizava a sua recuperação depois de meio século de
decadência, iniciada por outro incêndio em 1946…
Este museu era
diferente. As suas colecções eram interactivas, evolutivas, brincalhonas; ao
invés de adoptar o tom sério e professoral com que tantas vezes, e sobretudo
pelos portugueses, se ensina e se “vende” o português, o MLP celebrava a
diversidade das diferentes versões, sotaques e utilizações da língua,
procurando chamar a atenção para aspectos menos conhecidos da sua origem bem
como da actualidade. Nunca se tinha feito um museu assim, voltado para a
língua. Os brasileiros médios encontravam ali um enquadramento orgulhoso para
este património que, mal ou bem, são os únicos a defender por esse mundo fora,
quase sem ajuda dos portugueses; os portugueses saíam do museu com uma
inconfundível sensação mista de orgulho e inveja, esta última por não terem
sabido criar um espaço minimamente comparável; e mesmo quem não fala português
ficava entretido com a sua sonoridade extraordinária e o seu lado lúdico
passível de ser ali explorado, sem escusada reverência. Isso traduzia-se em ter
Camões a partilhar a “praça da língua” com Chico Buarque, ou ver a cronologia
de uma língua que parte de elementos do latim e do etrusco antigo até ser
moldada pelas rimas de um rapper
paulista, por exemplo.
Curiosamente, na saga
de Harry Potter (bem traduzida para português, felizmente), ao livro sobre um
“cálice de fogo” seguiu-se um livro sobre “a Ordem da Fénix”. E é exactamente
uma fénix aquilo em que o museu se pode tornar, renascido das cinzas e tornado
ainda mais forte. Devido à natureza interactiva e contemporânea do museu, todo
o seu acervo estava já digitalizado e pode ser recuperado – ou seja, existe o
proverbial backup. As perdas são
sobretudo arquitectónicas, mas mesmo aí os poderes públicos brasileiros já
garantiram a reconstrução do edifício (e o novo governo português, pela voz do
ministro da Cultura, já prometeu apoio “no que puder”). A língua portuguesa
merece-o, e nós, os seus utilizadores, os seus amantes, também; afinal, estamos
cansados dos maus tratos que quotidianamente lhe são infligidos. Até pelo fogo!
Sem comentários:
Enviar um comentário