terça-feira, 8 de março de 2016

A fantochada do CCP


O presidente do Haiti chama-se Michel Martelly. Este homem é detentor da dúbia honra de ser o chefe de Estado em todo o mundo eleito pela menor parte da sua população. A abstenção no Haiti ronda os 78% - e por isso, ao longo de quatro anos, este presidente ilegítimo não conseguiu organizar nenhum tipo de eleições no país, que agora não tem parlamento nem autarcas.

O Estado Novo organizava eleições, uma maquilhagem para disfarçar a sua verdadeira cara de ditadura totalitária, mas estas eram sistematicamente neutralizadas através de todos os truques sujos do cartório: para começar, não abrangiam a Presidência do Conselho – o verdadeiro poder; o recenseamento eleitoral só se estendia aos “cidadãos de idoneidade política” propostos pelo aparelho do partido único, a União Nacional; só podiam votar “os homens maiores de 21 anos, chefes de família, que soubessem ler e escrever e contribuíssem com determinado valor para o Estado”, mas que além disso “não demonstrassem ideias contrárias à disciplina social”. Quase ninguém votava naquele Portugal, a participação cívica era irrisória, e como tal todo o processo era uma farsa, onde os “candidatos” “eleitos” não tinham credibilidade nem legitimidade.

É chocante encontrar reminiscências do descrito acima no processo de eleição do pomposamente designado “Conselho das Comunidades Portuguesas”, um órgão consultivo do governo para os assuntos que digam respeito à diáspora – uma diáspora que, por obra e encorajamento do mesmo governo, não pára de crescer a um ritmo anual de 100 000 portugueses. O espectáculo pouco dignificante destas eleições que só não despoleta uma enorme celeuma porque, precisamente, este Conselho se transformou em algo de decorativo.

O secretário de Estado esperou até muito para lá do razoável para finalmente marcar a data das eleições para o CCP. Fê-lo no dia 3 de Julho, e apontou para… o fim do verão, a 6 de Setembro. Este estranho timing assegurou desde logo que os potenciais votantes só tivessem quatro dias, até 7 de Julho, para se recensearem (na realidade, no último dia o sistema informático bloqueou em Lisboa, logo para muitos nem isso). E também garantiu que a campanha eleitoral, dirigida aos emigrantes, decorresse durante o mês de Agosto – quando, obviamente, a esmagadora maioria se encontra incontactável e de férias, muitas vezes em Portugal…


O regime salazarista exigia à oposição que fabricasse os seus próprios boletins de voto e os distribuísse ela própria pelos eleitores recenseados – mas a oposição não tinha acesso aos cadernos eleitorais, pelo que a tarefa era como procurar uma agulha num palheiro. Similarmente, uma candidatura independente para o CCP (que necessita frequentemente de 50 ou mais assinaturas para poder avançar) teve menos de um mês para encontrar esses apoios numa altura de férias… e sem ter acesso, em muitos casos, aos cadernos eleitorais que deveriam por lei ter sido divulgados – mas não foram. Ficaram assim em vantagem as candidaturas apoiadas pelos grandes partidos, que podem muito mais facilmente recolher os seus apoios.

Há ainda outras formas de esvaziar uma votação – por exemplo reduzindo artificialmente o número de votantes. Também isso foi feito com a nova lei, aprovada em Abril, que exige aos emigrantes o recenseamento e não apenas a simples inscrição no consulado. Tomando o mesmo exemplo: em vez de mais de 100 000 mil inscritos (estimativa conservadora), o Luxemburgo passou a ter como universo de votantes 1472 portugueses (menos 8% que em 2011…). Destes, 34 deram-se ao trabalho de ir votar. 34 pessoas! Se considerarmos que no Grão-Ducado existem 100 000 portugueses, então os conselheiros foram eleitos por 0,03% dos emigrantes no país… Em Londres votaram 20 pessoas (0,01%). O haitiano Martelly ficaria orgulhoso. Mas os portugueses no estrangeiro, esses, são mais uma vez vítimas de uma fantochada.

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