Henry Ford, o homem
que com métodos implacáveis ajudou a massificar o automóvel, via-se a si
próprio como o protótipo do “Homem Novo” que iria ajudar a Humanidade a cortar
com o passado e evoluir desenfreadamente. Nesse contexto, Ford afirmou,
peremptório: “a História não passa de uma grande treta”. O industrial americano
também famigerado pelo seu anti-semitismo viria mais tarde a tentar
desculpar-se por estas palavras. O curioso é que a frase foi proferida
exactamente há um século, em 1916 – um ano significativo como poucos, cheio de
eventos desastrosos cujas consequências perduram até aos nossos dias.
O mundo tinha
enlouquecido. A Grande Guerra tinha começado por disputas orgulhosas entre
cabeças coroadas que, embora de impérios diferentes, pertenciam à mesma família
(a excepção é o presidente francês Poincaré, talvez o principal instigador do
início da catástrofe); os soldados mobilizados naquele outono de 1914
acreditavam jovialmente já poder vir passar aquele Natal a casa. Na verdade,
milhões não passaram mais nenhum Natal na Terra, e em 1916 a guerra tinha
mudado de natureza. A ideia de que a dinâmica ofensiva e a estratégia no terreno
eram suficientes para derrotar defesas entricheiradas e equipadas com armas
modernas estava, também ela, a morrer; no seu lugar tinha nascido, dos dois
lados da barricada, uma convicção fatalista que a guerra era interminável,
inútil e impossível de ser ganha, tendo-se transformado numa máquina
trituradora cujo único propósito seria o de devorar carne para canhão.
Duas batalhas
contribuíram decisivamente para se chegar a este ponto, batalhas cujos nomes
viverão para sempre como sinónimos de infâmia: Verdun e Somme. Ambas se
desenrolaram em 1916. Verdun foi, muito simplesmente, a batalha mais longa da
História da Humanidade, 10 longos meses de Fevereiro a Dezembro que provocaram
a morte de 700 000 franceses e alemães e traumas para a vida em muitos mais, 10
meses em que a aldeia de Fleury mudou de bandeira por 16 vezes, 10 meses após
os quais os dois campos ocupavam exactamente as mesmas posições em que
começaram. No Somme, a 1 de Julho, os britânicos sofreram o pior dia de sempre
do seu exército (57 000 perdas, homens enviados com uma espingarda e um cantil
contra uma impressionante barreira de canhões alemães) e a carnificina
continuou por meses até tomar 1,5 milhões de vidas, vindas de todo o mundo para
lutar pelo seu imperador e conquistar, no total, uns meros 9 km de terreno.
A combinação de
lama, canhões, futilidade e mortes em massa fez mover para sempre as placas
tectónicas de um mundo que não parou de acelerar desde então. Na frente leste,
o império Austro-Húngaro desfazia-se aos poucos dando origem a um novo fenómeno
que não parou de criar instabilidade desde então: o nacionalismo. Entretanto, a
Alemanha, desejosa de se desfazer do czar russo e livrar-se assim de um
inimigo, começa a apoiar um jovem revolucionário a preparar a sua tomada do
poder: o seu nome era Lenine, e o mundo não mais será o mesmo.
Sem o saberem, as
grandes potências europeias, ou seja a própria Europa enquanto centro do mundo,
vivem em 1916 o seu último ano de uma supremacia global que se tinha iniciado
com os Descobrimentos. Nesse ano a Irlanda revolta-se pela primeira vez,
marcando o início do declínio de um império, o Britânico, onde “o sol nunca se
punha”; será uma jovem nação ambiciosa, os Estados Unidos, a desequilibrar a
balança da guerra e tomar o seu lugar, tornando-se o polícia do mundo. Mas a
Europa não sairá de cena sem o seu canto do cisne: um diplomata britânico e um
francês, o sr. Sykes e o sr. Picot, assinam um tratado que divide abruptamente
o Médio Oriente em zonas de influência dos seus países. A divisão é feita em
linhas rectas, sem olhar a povos, culturas ou religiões, criando um barril de
pólvora permanente. Hoje, 100 anos depois, o Estado Islâmico desenvolve-se
precisamente numa dessas fronteiras artificiais, entre a Síria francófona e o
Iraque anglófono.
De 1916 a 2016, em
linha recta.
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