
O nome do actor é
David Bowie, representando-se a si próprio nas arrepiantes imagens que nos
deixou apenas dias antes de morrer. “Lazarus”, o vídeo, foi gravado em apenas
um dia de Novembro de 2015 – ou para ser mais preciso, em apenas cinco horas:
os tratamentos que Bowie seguia tinham-no fragilizado a tal ponto que qualquer
tempo a mais seria desaconselhável. E todos os cuidados com o seu belíssimo
cabelo eram poucos, dado que após a quimioterapia existia o risco de qualquer
puxadela o fazer cair em tufos.
O cantor sabia há
seis meses que o seu cancro no fígado, possivelmente provocado por anos de
abuso de drogas e tabaco, era terminal. Sabia, portanto, que não lhe restava
muito tempo para completar o seu mais extraordinário projecto: um último
trabalho que fosse muito mais do que um (excelente) álbum musical, constituindo
um testamento público – e uma despedida macabra. Logo, Bowie acelerou, e aos
que com ele trabalharam pediu o mesmo. Ao realizador de “Lazarus” avisou-o de
que talvez viesse a ser necessário de um sósia para completar as filmagens; mas
no vídeo final é mesmo o artista quem dança em pose, quem escreve febrilmente
as suas ideias infinitas e quem canta “agora serei livre” antes de se enfiar
dentro de um armário com fortes semelhanças a um caixão. Por um segundo, ainda
vislumbramos a mão que lentamente fecha a porta sobre si. Nunca mais veremos
Bowie.
“Blackstar”, o álbum
aberto ao mundo a 8 de Janeiro (dia de aniversário de Bowie, e dois dias antes
da sua morte), é música feita por um artista que contempla a sua própria
sepultura. Pressentindo a chegada da morte, Mozart também procurou apressar o
seu Requiem, sem sucesso. Beethoven, já surdo e fraco, completou ainda uma
Grande Fuga que foi tão mal recebida publicamente que levou o grande compositor
a alterar mais uma vez o final da Op. 130, o seu último trabalho. Bach, já no
seu leito de morte, cego e a recuperar de um ataque cardíaco, não deixou de ser
perfeccionista e ditou correcções a uma pequena peça coral, alterando-lhe
também o nome para “Perante o Teu trono agora me apresento”. Uma forma serena e
crente de terminar a vida e a carreira, diferente do dramatismo teatral e
altamente mediático de David Bowie.
É que com ele
desaparece também a possibilidade de um artista cativar toda uma geração, quase
atingindo a impossível unanimidade de públicos completamente fragmentados numa
miríade de estilos musicais diferentes. A carreira deste jovem de Brixton, em
Londres, confunde-se com a própria História da música moderna, que seria bem
diferente se o seu talento nunca tivesse sido descoberto. Tantos são – eu incluído,
obviamente – os que têm a agradecer-lhe a “banda sonora das suas vidas”…
Bowie, o homem que
estava sempre à frente do seu tempo, o “homem que tinha caído na Terra” (título
do primeiro filme que protagonizou), era simultaneamente um génio renascentista
pois destacava-se em diferentes campos artísticos, na imagem, no teatro, no
cinema, na moda, até na pintura. A esta espécie de Da Vinci renascido das
cinzas é inevitável prestar uma homenagem sentida no momento em que ele se
torna a estrela negra que tinha profetizado, voltando às cinzas. Ashes to Ashes.
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