terça-feira, 8 de março de 2016

O homem do Renascimento


"Look up here, I'm in Heaven". O homem que nos convida a olhar para cima e vê-lo no paraíso está num quarto sombrio, levitando sobre a cama. Tem um aspecto emaciado, a pele pálida e os olhos tapados por uma ligadura, enquanto sobre esta, no lugar dos olhos, estão dois botões negros. Mais acima, os cabelos em pé, agora prateados, não parecem em perigo. Pouco a pouco, o espectador percebe que aquele personagem é Lázaro, que biblicamente ressuscita quatro dias depois da sua morte; a música que acompanha o vídeo – um jazz negro vocal – tem por título “Lazarus”.

O nome do actor é David Bowie, representando-se a si próprio nas arrepiantes imagens que nos deixou apenas dias antes de morrer. “Lazarus”, o vídeo, foi gravado em apenas um dia de Novembro de 2015 – ou para ser mais preciso, em apenas cinco horas: os tratamentos que Bowie seguia tinham-no fragilizado a tal ponto que qualquer tempo a mais seria desaconselhável. E todos os cuidados com o seu belíssimo cabelo eram poucos, dado que após a quimioterapia existia o risco de qualquer puxadela o fazer cair em tufos.

O cantor sabia há seis meses que o seu cancro no fígado, possivelmente provocado por anos de abuso de drogas e tabaco, era terminal. Sabia, portanto, que não lhe restava muito tempo para completar o seu mais extraordinário projecto: um último trabalho que fosse muito mais do que um (excelente) álbum musical, constituindo um testamento público – e uma despedida macabra. Logo, Bowie acelerou, e aos que com ele trabalharam pediu o mesmo. Ao realizador de “Lazarus” avisou-o de que talvez viesse a ser necessário de um sósia para completar as filmagens; mas no vídeo final é mesmo o artista quem dança em pose, quem escreve febrilmente as suas ideias infinitas e quem canta “agora serei livre” antes de se enfiar dentro de um armário com fortes semelhanças a um caixão. Por um segundo, ainda vislumbramos a mão que lentamente fecha a porta sobre si. Nunca mais veremos Bowie.

“Blackstar”, o álbum aberto ao mundo a 8 de Janeiro (dia de aniversário de Bowie, e dois dias antes da sua morte), é música feita por um artista que contempla a sua própria sepultura. Pressentindo a chegada da morte, Mozart também procurou apressar o seu Requiem, sem sucesso. Beethoven, já surdo e fraco, completou ainda uma Grande Fuga que foi tão mal recebida publicamente que levou o grande compositor a alterar mais uma vez o final da Op. 130, o seu último trabalho. Bach, já no seu leito de morte, cego e a recuperar de um ataque cardíaco, não deixou de ser perfeccionista e ditou correcções a uma pequena peça coral, alterando-lhe também o nome para “Perante o Teu trono agora me apresento”. Uma forma serena e crente de terminar a vida e a carreira, diferente do dramatismo teatral e altamente mediático de David Bowie.

É que com ele desaparece também a possibilidade de um artista cativar toda uma geração, quase atingindo a impossível unanimidade de públicos completamente fragmentados numa miríade de estilos musicais diferentes. A carreira deste jovem de Brixton, em Londres, confunde-se com a própria História da música moderna, que seria bem diferente se o seu talento nunca tivesse sido descoberto. Tantos são – eu incluído, obviamente – os que têm a agradecer-lhe a “banda sonora das suas vidas”…

Bowie, o homem que estava sempre à frente do seu tempo, o “homem que tinha caído na Terra” (título do primeiro filme que protagonizou), era simultaneamente um génio renascentista pois destacava-se em diferentes campos artísticos, na imagem, no teatro, no cinema, na moda, até na pintura. A esta espécie de Da Vinci renascido das cinzas é inevitável prestar uma homenagem sentida no momento em que ele se torna a estrela negra que tinha profetizado, voltando às cinzas. Ashes to Ashes.

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