terça-feira, 8 de março de 2016

O Caso Spotlight


Um filme sobre três crises acaba de ser considerado o melhor do ano. O Caso Spotlight venceu, para surpresa generalizada, o Óscar de Melhor Filme, ultrapassando grandes produções – cheias de vedetas e efeitos especiais, muito mais ao gosto de Hollywood – como eram O Renascido ou Mad Max. Mas não é só por isso que a vitória de Spotlight numa competição industrial tão desacreditada como os óscares surpreende: é porque se trata de um filme sério, sóbrio, bem delineado, que não apela para os instintos mais básicos do espectador mas antes lhe desenvolve (e o envolve em) uma óptima história que o vai fazer pensar. Assim chegamos à primeira crise de que trata Spotlight: a do cinema, uma arte tornada produto, e um produto tornado de consumo rápido que deixa nos nossos sentidos um certo sabor a plástico. Mais do que isso, um produto esgotado de ideias, agora que o barril das sequelas de super-heróis já foi raspado até ao fundo. O óscar de Spotlight também acontece porque a indústria do cinema tem a consciência pesada (ainda mais por, no ano passado, não ter outorgado a estatueta ao ponto de viragem conceptual que representava “Boyhood – Momentos de uma vida”) e quer ser vista como também sendo capaz de gostar de filmes para gente grande.

Spotlight é um filme sobre a investigação feita por um jornal americano, o Globe, desvendando o escândalo de abusos sexuais cometidos por padres sobre menores na arquidiocese de Boston, nos EUA. O próprio filme, no final, refere que no total foram acusados em tribunal 169 padres, e referindo “mais de 1000 sobreviventes” na área (muitas das vítimas caíram em dependências várias e não viveram muitos anos). Naturalmente, estas revelações encorajaram muitas outras vítimas a ousarem falar, tendo escândalos similares sido revelados em outros locais do planeta. A crise subsequente, não obstante algum trabalho de reconciliação que tem sido feito, continua hoje a abalar os próprios pilares da Igreja Católica.

Não pretendo escrever sobre cinema, até porque o Raúl Reis já o faz muito bem neste mesmo jornal, que por sinal conta também com cronistas muito mais habilitados em dissertar sobre a acção da Igreja. A crise de Spotlight que me interessa é a terceira: a do jornalismo. A investigação do jornal durou seis meses, durante os quais a célula de jornalismo de investigação (quatro pessoas que podiam passar um ano sem escrever uma linha no jornal, um luxo já na altura, em 2001, e algo utópico nos dias de hoje) sofreu todo o tipo de pressões para abafar a história: desde advogados a outros jornalistas, passando por católicos devotos e antigos colegas de escola. Logo no início, ao ouvir as possíveis implicações do caso, o maior accionista do jornal avisa o repórter: “mais de metade dos nossos leitores são católicos… e eles não vão gostar de ler esta história”. O jornalista responde “acho que lhes vai interessar”.

Como se lida com a descoberta de uma verdade explosiva? Os jornalistas do Globe, entre eles o lusodescendente Mike Rezendes, ganharam o prémio Pulitzer, recompensando o “excepcional serviço público graças a um corajoso trabalho de investigação que furou o secretismo, provocando reacções internacionais e reformas nas instituições”. Triste é que talvez este trabalho não pudesse acontecer hoje, em jornais que baixam a circulação todos os meses, redacções depauperadas por cortes, histórias cada vez mais leves e patetas, e um clima de insegurança no emprego e pressão económica latente que faz dos jornais pouco mais do que caixa de ressonância do(s) poder(es), e das mulheres e homens que neles escrevem pouco livres, logo pouco capazes de exercerem o essencial papel dos media. Descobrir, denunciar, garantir, mostrar, explicar, enquadrar… contam-se pelos dedos os meios de comunicação que ainda o conseguem. Em Portugal, por exemplo, não há nenhum. Quantas conspirações, quantos escândalos acontecem à nossa volta sem que alguma vez o venhamos a saber?

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