“Muito simplesmente,
podemos infringir as leis europeias de protecção de dados. Nunca vai acontecer
nada”. Um jovem de 24 anos ouviu esta frase durante o semestre em que resolveu
continuar os seus estudos na Califórnia. A arrogância do professor
norte-americano despertou-o; a evidente impunidade irritou-o. A frase funcionou
para o austríaco Max Schrems como uma gota de água, a gota que o fez iniciar
uma luta particular pela recuperação da sua privacidade e pela aplicação da lei
– a Europa tem leis, mas só as aplica contra os fracos. “Uma grande companhia
multinacional vive no Velho Oeste, onde funciona a lei do mais forte, e pode
fazer o que lhe apetece”, afirmou Schrems ao explicar as suas motivações.
Ao regressar nesse
ano de 2011 à Europa, Max Schrems pediu ao Facebook que lhe entregasse toda a
informação que a empresa detinha sobre si próprio. No Portugal de 1974, ou na
Alemanha de Leste de 1989, muitos se surpreenderam com o tamanho da sua ficha individual
de informações detida respectivamente pela PIDE e pela Stasi, mas nenhuma delas
chegava perto da extensão do ficheiro que Schrems recebeu do Facebook: 1222
páginas com absolutamente todos os cliques, fotos, gostos, mensagens,
comentários que o austríaco tinha feito ao longo de anos – incluindo muitos que
ele tinha apagado. “Quando pensas que apagas algo do Facebook, na verdade
apenas estás a escondê-lo de ti próprio”, avisa.
Schrems, um europeu,
sabia que os seus dados não estavam a ser protegidos. Mais do que isso, sabia –
como todos temos a obrigação de saber depois das revelações de Edward Snowden
sobre a espionagem em larga escala de tudo, de todos, em toda a parte – que os
seus dados pessoais eram transmitidos à NSA, a PIDE americana, através do
programa secreto PRISM. E por isso fez uma queixa às autoridades irlandesas (a
sede europeia do Facebook é na Irlanda, onde a companhia quase não paga
impostos), que prontamente a rejeitaram. Schrems persistiu: apresentou 22
queixas, todas rejeitadas na base do papel de conveniência que a Europa
produziu há 15 anos chamado “Safe Harbour” (Porto Seguro) e que permite às
empresas europeias entregarem tudo e mais alguma coisa às suas congéneres
americanas desde que elas se certifiquem como “garantindo aos europeus um nível
adequado e equivalente de protecção dos seus dados” – seja lá o que isso queira
dizer. Quem certifica essa protecção como adequada? As próprias empresas.
O caso subiu até ao
Tribunal de Justiça, no Luxemburgo. E aí, em Outubro, o pequeno David austríaco
derrotou vários Golias: o Facebook, o esquema Safe Harbour de transferência de
dados (utilizado por mais de 4000 grandes companhias), e a Comissão Europeia
que o engendrou e logo se desinteressou da defesa de um direito fundamental dos
cidadãos europeus – a privacidade. Um estudante de doutoramento venceu o caso e
estilhaçou o Porto (In)seguro. Desde o seu exílio, esse outro D. Quixote
moderno, Snowden, congratulou-o: “Parabéns, Max Schrems. Mudaste o mundo para
melhor”.
Mudou mesmo? Depende
do desfecho das próximas batalhas. A decisão do Tribunal de Justiça encoraja e
até obriga as autoridades europeias de protecção de dados a fazer o seu
trabalho – mas é preciso que isso aconteça. Está iminente uma outra decisão
importante, caso Microsoft vs Governo dos EUA, em que aquela se recusa a
entregar a este os emails guardados em servidores europeus. E há apenas dois
dias a Bélgica proibiu o Facebook de espiar o comportamento na rede de quem não
tem uma conta e se limitou a seguir um link na rede social (os que têm conta
podem continuar a ser espiados, mas ainda assim já é um princípio).
Pode ser que Max
Schrems seja um ponto de viragem. Talvez, apenas talvez, as arrepiantes
palavras de Mark Zuckerberg proferidas em 2010, “a era da privacidade acabou”,
se venham a revelar prematuras ou até… erradas.
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