terça-feira, 8 de março de 2016

Davos é uma festa


Chegou mais uma vez aquela altura do ano... em que os líderes deste mundo se reúnem publicamente numa aldeia de montanha suíça, cuidadosamente fechada ao exterior e onde os preços são, durante uma semana, duplamente exorbitantes. A aldeia é Davos, e o grande campo de férias tem o nome de Fórum Económico Mundial. Basicamente, é-se alguém na vida uma vez que se é convidado - e então se o convite for para discursar, ainda melhor. Mesmo que durante as conferências falte muito daquele "factor bem-estar", pois os temas são espinhosos e o mundo anda um lugar perigoso (a organização lembrou que "nunca antes tivemos tantos problemas graves a discutir como nesta edição”), esse bem-estar despreocupado domina ainda assim os eventos sociais assim que o sol se põe. Uma espécie de Congresso de Viena dos nossos tempos – em 1815, os diplomatas e monarcas europeus traçavam fronteiras no mundo durante o dia e dançavam valsas durante a noite.

Davos, um gigantesco seminário de elite combinado com festas sumptuosas bem regadas com álcoois sofisticados, estava nesta edição (a 46.ª) subordinado ao tema “a Quarta Revolução Industrial” – a forma como a internet permanente e ubíqua permite uma transformação profunda na troca e tratamento de dados e na capacidade dos computadores aprenderem e assim substituírem a intervenção humana em muitas áreas, rompendo com uma força e velocidade nunca antes vistas os contextos económico, ecológico, social ou cultural que conhecemos até hoje.

É habitual que Davos siga um tema a cada ano, a diferença esteve no nervosismo latente com que este foi tratado. Porque mesmo num ecossistema tão específico – e altamente especializado – como é o Fórum Económico Mundial, é possível notar a clivagem entre os insiders e os outsiders, ou seja, entre aqueles cujos conhecimentos digitais lhes permitem surfar a onda das mudanças rapidíssimas que se estão a dar na nossa sociedade e... os outros, sendo que entre estes se encontram quase todos os líderes políticos tradicionais que se vêem repentinamente tão ultrapassados pelos acontecimentos, e tão desprovidos de poder, que as suas comunicações soam quase dinossáurias.

Joe Biden, vice-presidente dos Estados Unidos, é um desses líderes. A sua conferência em Davos foi interessante porque desassombrada, e as suas palavras contêm nas entrelinhas imensos motivos de preocupação para todos aqueles – a esmagadora maioria de entre nós – que não estão preparados, nem sequer alerta, para essa revolução digital que se avizinha (e que já começou). Biden improvisou: "chamam-me Joe Classe Média, mas não como elogio: referem-se à minha falta de sofisticação. Mas a classe média, e a sua estabilidade, são o cimento que une a sociedade, e parece-me que sacrificá-la no altar da tecnologia criará certamente mais perdedores que vencedores". Sente-se aqui um certo odor a desespero antecipado, o que nos deve fazer soar todas as campainhas de alarme.

Que mundo estamos a desenhar para o futuro? Em Davos ouviram-se muitas frases preocupantes, duas delas proferidas pela mesma mulher, Sharan Burrow, secretária-geral da Confederação Internacional de Sindicatos: "Não há empregos para os trabalhadores num planeta morto", mas também: "O nosso actual modelo económico chama-se desigualdade planeada". De facto, descobrimos na semana passada – e nunca na História tínhamos chegado a este ponto – que apenas 68 indivíduos (0,000001 % da população do planeta) detêm tanto dinheiro como toda a metade mais pobre da Humanidade, quase 4 biliões de pessoas. O medo justificado é que a "quarta revolução industrial" venha piorar este estado de coisas, lançando alguns biliões mais numa pobreza remediada, traduzida como toda a vida trabalhando de sol a sol sem nenhum outro objectivo ou possibilidade que o de produzir riquezas para outrem. Uma sociedade feudal com um punhado de lordes acima de qualquer poder terreno e exércitos de mercenários facilmente substituíveis ou completamente redundantes. Uma sociedade predatória de recursos, incluindo aqui as mentes e os corpos. Um sistema profundamente insustentável a longo prazo. E no entanto, em tantos sentidos, é já assim em que vivemos hoje.

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