Chegou mais uma vez
aquela altura do ano... em que os líderes deste mundo se reúnem publicamente
numa aldeia de montanha suíça, cuidadosamente fechada ao exterior e onde os
preços são, durante uma semana, duplamente exorbitantes. A aldeia é Davos, e o
grande campo de férias tem o nome de Fórum Económico Mundial. Basicamente, é-se
alguém na vida uma vez que se é convidado - e então se o convite for para
discursar, ainda melhor. Mesmo que durante as conferências falte muito daquele
"factor bem-estar", pois os temas são espinhosos e o mundo anda um
lugar perigoso (a organização lembrou que "nunca antes tivemos tantos
problemas graves a discutir como nesta edição”), esse bem-estar despreocupado
domina ainda assim os eventos sociais assim que o sol se põe. Uma espécie de
Congresso de Viena dos nossos tempos – em 1815, os diplomatas e monarcas
europeus traçavam fronteiras no mundo durante o dia e dançavam valsas durante a
noite.

É habitual que Davos
siga um tema a cada ano, a diferença esteve no nervosismo latente com que este
foi tratado. Porque mesmo num ecossistema tão específico – e altamente
especializado – como é o Fórum Económico Mundial, é possível notar a clivagem
entre os insiders e os outsiders, ou seja, entre aqueles cujos conhecimentos
digitais lhes permitem surfar a onda das mudanças rapidíssimas que se estão a
dar na nossa sociedade e... os outros, sendo que entre estes se encontram quase
todos os líderes políticos tradicionais que se vêem repentinamente tão
ultrapassados pelos acontecimentos, e tão desprovidos de poder, que as suas
comunicações soam quase dinossáurias.
Joe Biden,
vice-presidente dos Estados Unidos, é um desses líderes. A sua conferência em
Davos foi interessante porque desassombrada, e as suas palavras contêm nas
entrelinhas imensos motivos de preocupação para todos aqueles – a esmagadora
maioria de entre nós – que não estão preparados, nem sequer alerta, para essa
revolução digital que se avizinha (e que já começou). Biden improvisou:
"chamam-me Joe Classe Média, mas não como elogio: referem-se à minha falta
de sofisticação. Mas a classe média, e a sua estabilidade, são o cimento que
une a sociedade, e parece-me que sacrificá-la no altar da tecnologia criará
certamente mais perdedores que vencedores". Sente-se aqui um certo odor a
desespero antecipado, o que nos deve fazer soar todas as campainhas de alarme.
Que mundo estamos a
desenhar para o futuro? Em Davos ouviram-se muitas frases preocupantes, duas
delas proferidas pela mesma mulher, Sharan Burrow, secretária-geral da
Confederação Internacional de Sindicatos: "Não há empregos para os
trabalhadores num planeta morto", mas também: "O nosso actual modelo
económico chama-se desigualdade planeada". De facto, descobrimos na semana
passada – e nunca na História tínhamos chegado a este ponto – que apenas 68
indivíduos (0,000001 % da população do planeta) detêm tanto dinheiro como toda
a metade mais pobre da Humanidade, quase 4 biliões de pessoas. O medo
justificado é que a "quarta revolução industrial" venha piorar este
estado de coisas, lançando alguns biliões mais numa pobreza remediada,
traduzida como toda a vida trabalhando de sol a sol sem nenhum outro objectivo
ou possibilidade que o de produzir riquezas para outrem. Uma sociedade feudal
com um punhado de lordes acima de qualquer poder terreno e exércitos de
mercenários facilmente substituíveis ou completamente redundantes. Uma
sociedade predatória de recursos, incluindo aqui as mentes e os corpos. Um
sistema profundamente insustentável a longo prazo. E no entanto, em tantos
sentidos, é já assim em que vivemos hoje.
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