terça-feira, 8 de março de 2016

Comboios em Budapeste


"A História repete-se sempre, mas da segunda vez como farsa" é uma das frases mais sonantes do filósofo de Trier (Tréveris), Karl Marx. O famoso advogado Clarence Darrow retorquiu: "A História repete-se sempre, e isso é apenas um dos problemas que a História tem". Este é um daqueles momentos em que estamos no lado lunar, em que tudo se repete, como farsa, diante dos nossos olhos aflitos.

É assim que, na Hungria, se ergue um muro de divisão, reminiscente daquele outro muro a separar dois mundos que se ergueu em Berlim (e com os mesmos quatro metros de altura, e com arame farpado), apenas com uma diferença substancial: em Berlim o desespero era para quem queria sair, na Hungria o muro é pensado para não deixar entrar.

É assim que, na Hungria, milhares de refugiados são convencidos a entrar num comboio apinhado com a Alemanha como suposto destino, mas na realidade o comboio termina a sua viagem 40 km mais tarde, num campo… de refugiados. E é assim que na República Checa a polícia identifica os estranhos recém-chegados através de números escritos na pele. Cenas que nos transportam para 1943, para horrores indescritíveis que pensávamos definitivamente afastados, mas a História ainda agora começou a repetir-se.

É assim que, na Hungria, o primeiro-ministro clama que aceitar estes refugiados seria “o fim da Europa”, agitando os medos mais primários e populistas de parte da população – mas logo em seguida, incoerentemente, também afirma que o problema “não é da Europa, é só da Alemanha”. Talvez Juncker não estivesse tão fora do contexto quando, jovial e desbragadamente, acolheu o húngaro Orbán em Bruxelas avisando “vem aí o ditador”.

É assim que, na Hungria, os tempos mudaram muito desde 1956, o ano da revolução. Em Outubro desse ano, uma sublevação popular paralisou o governo pró-soviético e aboliu a polícia política. A intenção era a de organizar eleições livres e expulsar as tropas da URSS mas, menos de duas semanas mais tarde, os tanques soviéticos entraram em Budapeste para restabelecer a ordem da Cortina de Ferro por mais uma geração. Invadido e derrotado, o governo liberal de Budapeste abriu as fronteiras para que muitos húngaros jovens e dinâmicos se salvassem; a um ritmo de quase 8000 pessoas por dia, perto de 200 000 o fizeram. A Áustria (então devastada pela derrota na II guerra) ficou sobrecarregada: o país abriu escolas, igrejas e mesmo casas particulares para proteger aqueles milhares dos rigores do inverno. Na Jugoslávia, os hotéis costeiros (nessa altura vazios) foram requisitados para acolher o êxodo. A Áustria pediu auxílio à NATO, que reconheceu a pressão sobre o país e estabeleceu um sistema de quotas que permitiu o rápido realojamento da maior parte dos refugiados. A Alemanha dispôs-se a acolher 10% do total de pessoas; também a Suécia, a Suíça, o Reino Unido e mesmo os EUA e a Austrália se prontificaram a acolher um grande contingente de húngaros. Um processo semelhante voltou a acontecer em 1968 após outra abertura política esmagada pela URSS, a primavera de Praga, e, no fundo, ao longo de meio século de comunismo em toda a Europa de Leste.

Solidariedade europeia: essa parte da História não se repete, como já desconfiávamos. Hungria, República Checa, Eslováquia e Polónia, países onde a gratidão e a memória estão em falta, reuniram-se na sexta-feira para discutir a crise migratória actual; no comunicado final da reunião, ao mesmo tempo que reafirmam a sua oposição a aceitar mais refugiados, os líderes destes países também conseguem pedir à UE mais dinheiro… para poder não o fazer.

Assim, realmente, será o fim da Europa. Por entre a discórdia, o egoísmo e a miséria, não resta muito espaço para a construção de um continente de paz e prosperidade.

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