“Submissão” de Michel Houellebecq é talvez o livro mais
controverso de 2015. Numa macabra coincidência, o livro foi publicado em França
no mesmo dia dos ataques ao Charlie Hebdo, o que o tornou estranhamente
premonitório; ainda no mesmo dia, saiu uma entrevista do autor que afirmava
“haver um desprezo total pelas autoridades neste país, e sente-se que tal não
pode continuar. Algo terá de mudar. Não sei bem o quê, mas algo”.
Muita coisa mudou naquele dia odioso, e o livro, que é
uma ficção política, acertou em cheio no seu nervo. A acção passa-se em 2022, e
de forma a impedir a vitória da Frente Nacional de Marine Le Pen nas
presidenciais, o Partido Socialista e a UMP aliam-se ao novo Partido da
Irmandade Islâmica e ao seu carismático candidato, Mohammed Ben-Abbes, que
vence e se torna Presidente de França. A terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade
muda para sempre. Ben-Abbes proíbe professores não-muçulmanos, e o outrora
“sexo fraco” reencontra o sentido destas palavras: a poligamia é legalizada, as
mulheres proibidas de trabalhar, tornadas crentes forçadas e obrigadas a usar
roupas “que não aticem o desejo”.
Por vezes a realidade ultrapassa a ficção; outras vezes
imita-a. A presidente da Câmara usou quase as mesmas palavras no desastroso
rescaldo das agressões sexuais ocorridas em Colónia na noite de passagem para o
ano 2016, quando hordas de homens “de aspecto árabe” atacaram, roubaram,
humilharam, apalparam e, pelo menos num caso, violaram as mulheres que apenas
se queriam divertir e viver a vida numa cidade, país e continente onde, até
agora, parecia ser possível fazê-lo. Mas de acordo com Henriette Heker, já não
é: primeiro a burgomestre ficou muito perto de culpar as vítimas por terem sido
agredidas, e alguns dias depois sugeriu um perfeitamente imbecil “código de
conduta” para as mulheres de Colónia: não usar saias; ficar sempre à “distância
de mais de um braço” de estranhos; ficar dentro “do seu grupo” (logo, não andar
sozinhas); pedir ajuda a estranhos se estiverem ameaçadas. Um código de conduta
provavelmente inspirado naquele vigente em áreas controladas pelos taliban ou
pelo Daesh. Um código submisso.
A senhora Heker – e não é indiferente que se trate de uma
senhora, pois um político homem não poderia ter proferido estas pérolas e
manter-se num cargo público – atraiçoou todos os que a elegeram há apenas três
meses, após uma campanha em que, pelas suas posições pró-imigração, foi
esfaqueada por um homem desequilibrado. As cidadãs europeias não esperam que os
seus líderes políticos as culpem por serem assaltadas e lhes cerceiem as
liberdades de uma sociedade igualitária que levaram séculos a conquistar
(tarefa ainda não terminada). E os europeus não esperam que a máquina do
Estado, muito competente a controlar os impostos, a nossa utilização da
internet ou o nosso tempo de estacionamento, se demita pura e simplesmente de
garantir a ordem pública e a integridade física de quem nele vive, ao mesmo
tempo que faz recair a maior parte do ónus da absorção e integração de um
gigantesco fluxo de refugiados nos mesmos cidadãos. Construímos as sociedades
mais justas e livres do planeta e esperamos que quem nos lidera seja pelo menos
capaz de as defender tão bem como nós.
Mas esta é a visão de pormenor. Uma visão de conjunto
realça questões políticas mais profundas, das quais a menor não será a
inabilidade que a esquerda (sobretudo esta, mas também parte do centro-direita)
tem em obter a quadratura do círculo: defender uma sociedade progressista, com
igualdade de direitos, deveres e oportunidades, que defende a liberdade de
pensamento, de culto ou simplesmente de ser diferente – e ao mesmo tempo, apregoar
o direito alienável que as pessoas têm em fugir da guerra e da opressão, sendo
acolhidas em locais mais afortunados sem serem vistas como uma praga de
gafalhotos. Basta de ingenuidade, é necessário tomar opções difíceis, fazer
muito mais junto de todas as partes interessadas, e sim – adoptar regras do
jogo mais duras na admissão e controlo de quem quer viver na Europa. As
alternativas residem em que, por razões erradas, todo o poder mude para mãos
perigosas – de um lado os vários neonazismos, do outro o fundamentalismo
islâmico, existe o perigo real de que o nosso futuro seja feito de submissão. Como nos livros
premonitórios.
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