terça-feira, 8 de março de 2016

Submissão


“Submissão” de Michel Houellebecq é talvez o livro mais controverso de 2015. Numa macabra coincidência, o livro foi publicado em França no mesmo dia dos ataques ao Charlie Hebdo, o que o tornou estranhamente premonitório; ainda no mesmo dia, saiu uma entrevista do autor que afirmava “haver um desprezo total pelas autoridades neste país, e sente-se que tal não pode continuar. Algo terá de mudar. Não sei bem o quê, mas algo”.

Muita coisa mudou naquele dia odioso, e o livro, que é uma ficção política, acertou em cheio no seu nervo. A acção passa-se em 2022, e de forma a impedir a vitória da Frente Nacional de Marine Le Pen nas presidenciais, o Partido Socialista e a UMP aliam-se ao novo Partido da Irmandade Islâmica e ao seu carismático candidato, Mohammed Ben-Abbes, que vence e se torna Presidente de França. A terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade muda para sempre. Ben-Abbes proíbe professores não-muçulmanos, e o outrora “sexo fraco” reencontra o sentido destas palavras: a poligamia é legalizada, as mulheres proibidas de trabalhar, tornadas crentes forçadas e obrigadas a usar roupas “que não aticem o desejo”.

Por vezes a realidade ultrapassa a ficção; outras vezes imita-a. A presidente da Câmara usou quase as mesmas palavras no desastroso rescaldo das agressões sexuais ocorridas em Colónia na noite de passagem para o ano 2016, quando hordas de homens “de aspecto árabe” atacaram, roubaram, humilharam, apalparam e, pelo menos num caso, violaram as mulheres que apenas se queriam divertir e viver a vida numa cidade, país e continente onde, até agora, parecia ser possível fazê-lo. Mas de acordo com Henriette Heker, já não é: primeiro a burgomestre ficou muito perto de culpar as vítimas por terem sido agredidas, e alguns dias depois sugeriu um perfeitamente imbecil “código de conduta” para as mulheres de Colónia: não usar saias; ficar sempre à “distância de mais de um braço” de estranhos; ficar dentro “do seu grupo” (logo, não andar sozinhas); pedir ajuda a estranhos se estiverem ameaçadas. Um código de conduta provavelmente inspirado naquele vigente em áreas controladas pelos taliban ou pelo Daesh. Um código submisso.


A senhora Heker – e não é indiferente que se trate de uma senhora, pois um político homem não poderia ter proferido estas pérolas e manter-se num cargo público – atraiçoou todos os que a elegeram há apenas três meses, após uma campanha em que, pelas suas posições pró-imigração, foi esfaqueada por um homem desequilibrado. As cidadãs europeias não esperam que os seus líderes políticos as culpem por serem assaltadas e lhes cerceiem as liberdades de uma sociedade igualitária que levaram séculos a conquistar (tarefa ainda não terminada). E os europeus não esperam que a máquina do Estado, muito competente a controlar os impostos, a nossa utilização da internet ou o nosso tempo de estacionamento, se demita pura e simplesmente de garantir a ordem pública e a integridade física de quem nele vive, ao mesmo tempo que faz recair a maior parte do ónus da absorção e integração de um gigantesco fluxo de refugiados nos mesmos cidadãos. Construímos as sociedades mais justas e livres do planeta e esperamos que quem nos lidera seja pelo menos capaz de as defender tão bem como nós.

Mas esta é a visão de pormenor. Uma visão de conjunto realça questões políticas mais profundas, das quais a menor não será a inabilidade que a esquerda (sobretudo esta, mas também parte do centro-direita) tem em obter a quadratura do círculo: defender uma sociedade progressista, com igualdade de direitos, deveres e oportunidades, que defende a liberdade de pensamento, de culto ou simplesmente de ser diferente – e ao mesmo tempo, apregoar o direito alienável que as pessoas têm em fugir da guerra e da opressão, sendo acolhidas em locais mais afortunados sem serem vistas como uma praga de gafalhotos. Basta de ingenuidade, é necessário tomar opções difíceis, fazer muito mais junto de todas as partes interessadas, e sim – adoptar regras do jogo mais duras na admissão e controlo de quem quer viver na Europa. As alternativas residem em que, por razões erradas, todo o poder mude para mãos perigosas – de um lado os vários neonazismos, do outro o fundamentalismo islâmico, existe o perigo real de que o nosso futuro seja feito de submissão. Como nos livros premonitórios.

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