terça-feira, 4 de outubro de 2011

O brinde que melhorou o mundo

Os portugueses não brindam. Sim claro, é para nós um reflexo espontâneo levantar os copos e lançar um "à nossa!" sempre que se celebra uma ocasião especial, seja um aniversário ou um reencontro com um amigo a quem não vemos há meses. Mas em geral, no dia a dia, antes começar uma refeição de filetes de pescada com salada russa, não ocorre a ninguém em Portugal bater com o copo de tinto na cerveja do seu colega de escritório, no que é uma particularidade cultural do país — quase toda a restante Europa (sobretudo a Central e Oriental) não se atreve a levar uma bebida alcoólica aos lábios sem antes proferir um sonoro "Prost" ou uma variação de "na zdravi!". E no entanto, foi um brinde bem português a mudar o mundo, despoletando à sua maneira uma tempestade tal como o proverbial bater de asas de uma borboleta o pode fazer.

Dois estudantes em Coimbra bebem uns copos juntos. À terceira rodada decidem brindar: fazem tilintar os copos de vinho e exclamam: "à Liberdade!". O tema não é casual, porque o ano é 1961 e Portugal está manietado no formol do Estado Novo. Este, alheio aos ventos que sopram inexoravelmente adversos, desligou o país de uma Europa que se desenvolve a velocidade fulgurante e tornou o país na última potência colonial existente - um colonizador que está prestes a involver-se numa guerra terrível e sem sentido para manter essas mesmas "possessões". São os anos de chumbo do regime. Os dois jovens são identificados pela PIDE e terminam atrás das grades — e a história corre jornais de todo o planeta, envergonhando mais uma vez um país "orgulhosamente só" e onde o encontro de duas pessoas podia ser considerado uma manifestação.

Em Londres, um advogado lê a notícia durante a sua viagem de comboio. E revolta-se. Não apenas ao ponto de vociferar sozinho ou comentar o caso, como curiosidade, à mesa do café; este leitor ocasional decide ripostar. Escreve uma carta ao director do jornal Observer e intitula-a "Os Prisioneiros Esquecidos". No artigo, incita todos os leitores a que escrevam ao regime de Lisboa para que este liberte os estudantes. A resposta é encorajante: aqui está uma arma para o bem, um pequeno escudo de defesa para todos os indefesos contra os seus governos. Entusiasmado, Benenson, o advogado, precisa de uma organização que coordene estes esforços de pressão pública, pelo que se reúne no Luxemburgo com mais seis membros originais, e é no Grão-Ducado que nasce, em Julho de 1961, a Amnistia Internacional.

50 anos volvidos, é incauto procurar quantificar o impacto que a AI provoca no mundo em que vivemos, mas é seguro afirmar que a organização de direitos humanos já salvou vidas, libertou prisioneiros de consciência e dissuadiu, pela sua pressão e visibilidade, muitos crimes de serem cometidos. E mesmo entre variadas controvérsias políticas e financeiras recentes, o prestígio desta gigante com mais de 3 milhões de membros obriga-nos a considerá-la como uma força para o progresso da espécie humana. Nada mal como consequência de um tão utópico quanto jovial brinde à liberdade.

Sem comentários:

Enviar um comentário