quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maré baixa em Schengen

Roma, Paris, Amesterdão, Maastricht, Nice, Bruxelas, Frankfurt, Porto (assinatura do tratado que institui o Espaço Económico Europeu), Lisboa (tratado reformador)... todas estas cidades europeias deixaram o seu nome e a sua marca associados a momentos-chave da construção europeia. Essa honra pertence também, contra as probabilidades, a uma pequena aldeia luxemburguesa com 1527 habitantes: "Schengen" é provavelmente o mais conhecido dos nomes oriundos do pequeno Grão-Ducado, e isto porque simboliza uma das mais extraordinárias conquistas da Europa do pós-guerra – a livre circulação de pessoas, mercadorias, capitais... e ideias.

Schengen, o acordo, foi assinado em 1985 num barco sobre o rio Mosela e desde aí não parou de derrubar fronteiras, desde as reais às imaginárias passando pelas que apenas existem em mentes cansadas de ousar imaginar. Portugal e Espanha, onde apenas duas décadas antes tantos fugiam à pobreza e ao exército arriscando a vida a salto pelos montes, aderiram em 1991, e hoje em dia quase é possível recriar o que se passava há um século atrás: até 1914, era possível viajar de Portugal à Rússia sem mostrar um único passaporte. Em 2011, é possível fazê-lo da Islândia à Grécia, ou de Portugal à Estónia. Após os avanços e recuos civilizacionais, arrisco um balanço: poucos documentos individuais fizeram tanto para reconciliar o nosso continente como este, e todos os que se lembram de como era viajar antes da livre circulação (eu por várias vezes passei quase um dia encerrado num carro em Valença do Minho, para não ir mais longe) só podem estar agradecidos ao conceito.

Mas o pêndulo vai e volta, a maré sobe e desce... e estamos a assistir, por estes dias, ao primeiro ponto de viragem nesta superlativa ideia de apagar fronteiras internas. A "Fortaleza Europa", mesmo sabendo que necessita de mais trabalhadores imigrantes de outras partes do mundo se quiser manter o seu nível de vida actual, descobriu que os controlos nas fronteiras externas não são suficientes para impedir refugiados tunisinos de chegar a França. Os populistas no poder na Dinamarca aproveitaram para reerguer as suas cabanas alfandegárias à revelia de todos os outros parceiros; e os outros Estados-Membros rejeitaram em seguida a entrada da Bulgária e Roménia no espaço Schengen, contra os seus pedidos insistentes e o voto esmagador do Parlamento Europeu. Finalmente, há apenas quatro dias, o capítulo Schengen foi diluído ao permitir a cada país suspender temporariamente a sua aplicação, sem que sequer tenham sido bem definidas as regras para que tal aconteça. Portugal voltou a fechar-se ao mundo durante o Euro2004 de futebol, agora já nem precisará desse pretexto para o fazer.

Enquanto o projecto europeu estiver refém de lógicas progressivamente nacionalistas de líderes populistas sem visão de longo prazo, mais más notícias destas proliferarão. Afinal, pode bem ser que tal seja positivo - talvez os cidadãos europeus se tornem mais interventivos ao aperceberem-se de que nenhum progresso está garantido indefinidamente.

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