quinta-feira, 24 de novembro de 2011

V de Vendetta

Ultimamente tenho visto muitas pessoas estranhamente semelhantes. As suas características fisiológicas são algo fora do comum: pele muito pálida, só com um toque rosado nas bochechas; sobrancelhas pretas muito marcadas; os olhos são apenas dois buracos, mas são delineados num formato que faz lembrar um peixe, símbolo antiquíssimo e muito forte... a boca, essa, está sublinhada com um bigode fino e longo e rematada por uma barba ainda mais fina e vertical. Uma boca para sempre congelada num sorriso enigmático, perturbador, satírico.

A máscara de V arrisca-se a entrar de rompante na iconografia da História. As suas feições são as de Guy Fawkes, um católico que em 1605 quis revoltar-se contra a sua religião oprimida na Inglaterra protestante, e planeou fazer explodir o mais antigo parlamento do mundo, em Westminster. Vendo nele não um terrorista mas um corajoso combatente pela liberdade, os autores da banda desenhada "V for Vendetta" inspiraram-se em Fawkes para o seu herói, V.

V combate sozinho, de sorriso imperturbável, um regime totalitário imaginado para um futuro próximo. Hollywood, sempre à procura de boas histórias que possam ser desperdiçadas num qualquer filme pronto-a-comer, mostrou V ao mundo no péssimo filme de 2006 com o mesmo nome da banda desenhada - mas o pastiche teve ainda assim um ponto alto, o triunfante final, que culmina numa multidão de sósias de V deixando cair a máscara para se revelarem pessoas normais, anónimas, como eu ou o leitor.

A ironia, claro, está nos pormenores: a máscara ubíqua do movimento que varre o planeta faz parte do merchandising do filme e é produzida numa fábrica chinesa por uma multinacional, a Time Warner, que assim encontrou uma original forma de lucrar com um capitalismo em crise. Mas focarmo-nos no acessório é esquecermos o essencial: V está nos pontos focais do planeta. Foi imaginado em Londres, iniciou o movimento "Occupy" em Kuala Lumpur, Malásia, atravessou vários oceanos até Nova York, espalhou-se pelos Estados Unidos, atravessou o Atlântico e voltou a varrer a Europa. No dia 15 de Outubro, o movimento contou as suas manifestações: 951 cidades de 82 países, entre as quais nove cidades portuguesas (e 20 mil pessoas no Porto, mais 20 mil em Lisboa). Presente em praticamente todos os países da Europa, e mesmo em todos os da Europa Ocidental (menos no Luxemburgo, onde o tempo passa de forma diferente e é importante não criar ondas para melhor seguir a direcção da corrente), o Occupy, ou os Indignados, representam a inevitável resposta das populações aos tempos economicamente injustos em que vivemos.

E contudo, não é de uma revolução que se trata. Isto é um carnaval: a época onde as regras da sociedade se subvertiam, onde nobres e bispos se expunham à sátira da plebe, onde os costumes se castigavam rindo, como em Gil Vicente. Hoje, é V quem se ri, e V somos todos nós - ou antes, quase todos. Somos 99%.

1 comentário:

  1. Ótima publicação. Concordo. Achei a finalização excelente. De qualquer forma, com a SOPA e PIPA essa história apenas está em recomeço.

    São Paulo, Brasil.

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