terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Da ditadura das maiorias

O pequeno país europeu alberga uma vasta minoria, mais de um quarto da população, que tem como materna a língua do seu país de origem ou do país de origem dos pais ou avós. A importância económica desta minoria dentro do país não é bem vista pelos habitantes mais antigos, que falam a língua oficial (uma língua raramente escrita até há poucas décadas e ainda não "consolidada") e acusam os imigrantes de não fazerem esforços suficientes para a aprender, ao mesmo tempo que procuram tácticas para lhes cercear os direitos cívicos, tais como o de voto. Por seu lado, os antigos imigrantes, muitos deles já nascidos ali e concentrados nalgumas áreas geográficas e nomeadamente na capital (onde constituem a maioria da população activa) preferem a sua própria língua, uma das mais faladas ao nível global, à gramática agreste da pouco conhecida língua do país de acolhimento. Apesar dos esforços para a interacção e uma convivência sã, próspera e democrática, é inegável que aquela sociedade está dividida em dois grandes campos - e o da maioria, que goza de plenos direitos e poderes, nega-os à minoria.

Não, esta não é mais uma história sobre o Luxemburgo e a sua relação paternalista com os seus habitantes de origem portuguesa. O país chama-se Letónia e organizou no sábado um referendo sobre a elevação da língua russa ao estatuto de oficial. E os argumentos para o "sim" em tal referendo parecem esmagadores: de acordo com o último censo disponível, o russo é a língua materna de 37,5% dos habitantes, e a segunda de quase toda a restante população, etnicamente letã e que era forçada a aprender russo na escola durante os 50 anos em que o território era apenas uma pequena república soviética. No total, 94% dos habitantes da Letónia conseguem falar ou pelo menos entender russo, mais do que os 91% que fazem o mesmo em letão.

E no entanto o referendo, revelador ao mundo de vários factos desconfortáveis neste membro da União Europeia, resultou num esmagador (e esperado) "não". 20 anos de independência não foram suficientes para que os letões ultrapassassem o rancor anti-Rússia dos tempos em que o país era colonizado com russófonos; hoje em dia, os letões "originais" atropelam se for necessário os direitos humanos de forma a assegurar que a minoria russa não usufrua da voz que a sua dimensão justificaria, num filme que já conhecemos demasiado bem. O resultado da consulta nunca esteve em causa porque 300 000 pessoas (15 % da população) não têm direito à nacionalidade letã e vagueiam pelo país onde sempre viveram com o estatuto de "não-cidadãos" comparável ao das mulheres, estrangeiros e escravos da antiga Grécia, que também não podiam deter propriedades nem votar no chamado "berço da democracia". Ainda assim, as últimas eleições foram ganhas por um partido centrista, Harmonia, que defende mais direitos para a minoria russa - mas os partidos "do arco da governação", com menos votos, preferiram coligar-se com a extrema-direita e deixar a Harmonia fora do governo. Os extremistas rapidamente procuraram proibir todas as escolas russas que existem, o que obteve como resposta o referendo agora realizado. O próprio presidente do país tomou partido pela maioria e fez campanha pelo "não" ao russo: "a Letónia tem outras coisas mais importantes com que se preocupar". Num país que saiu agora dum processo de austeridade 25% mais pobre do que era antes, a frase faz sentido, mas a divisão da sociedade em duas partes antagónicas não é de somenos.

A Letónia partilha agora com o Luxemburgo a duvidosa honra de serem os únicos países europeus onde uma língua falada por mais de um quarto da população não ser oficial. Na Letónia, o russo acabará mais tarde ou mais cedo por sê-lo.

Sem comentários:

Enviar um comentário