Sem festivais de verão, um verão não saberia ao mesmo. Até a cidade de Paris, snob centro da alta cultura, acaba de apresentar 15 dias consecutivos de hip-hop. Há que pelo menos assistir a um destes eventos por ano; não tanto pelo contacto com o que de melhor se vai fazendo nas múltiplas áreas da música moderna – afinal, os nomes que encabeçam o cartaz são habitualmente bandas que tiveram os seus maiores sucessos há um par de anos atrás, na melhor das hipóteses – mas sim sobretudo para nos mantermos actualizados em relação a um tipo de cultura urbana e eternamente adolescente que ferve em banho-maria durante o ano para ser consumida nos grandes rituais iniciáticos que os festivais representam. Aqui se forjam, inclusivamente, novas formas de falar e agir.
Não, a “experiência total” de um festival de verão não tem tanto a ver com música, desce sim a um nível de ensaio sociológico. Durante quatro dias (no caso do festival escolhido para a pesquisa necessária a esta crónica, e que é também o maior desta zona da Europa – Rock Werchter) experimentamos um modo de vida alternativo, onde uma das grandes conquistas da civilização, a higiene pessoal, é esquecida em favor de um novo paradigma em que os mais capazes da espécie humana são os que ingerem quantidades oceânicas de cerveja (e presumo que isto terá as suas consequências ao nível do discernimento, mas não me lembro de muito). Debaixo de um sol inclemente, vaguear por entre os milhares de corpos deitados na terra respirando pó é um exercício de perseverança, sendo que a versão pós-aguaceiros significa fazê-lo encharcado e escorregando na lama, a mesma lama onde alguns festivaleiros mais afoitos improvisam algumas sessões de luta livre (livre de regras e também de quaisquer roupas). No recinto, a expressão “ama o teu próximo” toma um sentido premente e literal, pois os próximos estão sempre muito próximos e com o tempo aprende-se a gostar dos seus suores. E depois há sempre o ritual da refeição, seja ela massa demasiado cozida ou hambúrgueres pouco fritos, deglutida por entre as familiares montanhas de lixo plástico das mais variadas proveniências.
Descrito assim, um festival parece algo saído directamente de “Ensaio sobre a Cegueira”. Mas nem tudo são rosas, e para obter a desejada pulseirinha que dá acesso à chuva de concertos o candidato deve a) correr a comprá-la com três meses de antecedência e b) despender 169 euros, que somados a 22 para acampar, 15 para estacionar, 25 por cada 10 bebidas, mais uns 20 por dia para comer, 30 por uma t-shirt do festival e despesas variadas de viagem significam facilmente 400 ou 500 euros por um fim-de-semana alargado no campo. O pobre estudante que eu era nunca se teria dado a este luxo – mas hoje, do alto das minhas burguesas idade e noções de conforto, continuo a achar que o festival valeu cada cêntimo. Rock on.
segunda-feira, 13 de julho de 2009
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Aonde vais, meu menino?
E o prémio da ideia mais original da semana é atribuído… à polícia portuguesa. As forças de segurança anunciaram ir vigiar ruas e casas de suspeitos e criminosos para travar um agravamento da criminalidade nos meses de Verão. Os responsáveis pela PJ, PSP, SEF, GNR e SIS já se reuniram para rastrear os indivíduos e locais a vigiar e identificar – só numa zona da cidade de Lisboa, não divulgada, foram identificados mais de duas centenas de suspeitos (a Assembleia da República comporta 230 deputados mas estou certo de que se trata de uma simples coincidência).
Aplaudo sem reservas. Consciente de que nas casas dos cidadãos de bem, depois de uma crise financeira e anos de consistentes furtos, há cada vez menos artigos que valha a pena vigiar, a polícia prefere concentrar esforços nos locais mais bem fornecidos. A proposta, no que é aliás uma óbvia vantagem durante o verão, é refrescante: as populações sentem-se mais seguras, os ladrões obtêm uma vigilância grátis para os seus próprios pertences residenciais – algo não negligenciável se pensarmos que os integrantes desta classe profissional escolhem muitas vezes zonas arriscadas para viver – e a polícia estará mais perto dos seus clientes, que conhece tão bem a ponto de saber quem são e onde moram, sem querer no entanto ir ao ponto de prendê-los e arriscar assim ficar sem missão e emprego. Afinal, se o Joker estivesse sempre encarcerado, o Batman seria apenas um tipo que se veste de morcego e guia um carro de tuning esquisito.
Claro que anunciar publicamente que as casas dos criminosos vão ser vigiadas durante o verão pode levar alguns meliantes que sejam consumidores de tv ou jornais a, digamos, alterar o seu código postal de residência e ir dormir para outro sítio. Numa altura em que as associações hoteleiras se queixam de uma quebra de reservas na ordem dos 10%, este incentivo ao turismo interno só pode ser considerado bem-vindo.
O único ponto da medida que me suscita, confesso, algumas dúvidas prende-se com aqueles momentos – felizmente raros – em que o suspeito identificado sai de sua casa. Como conseguirá o agente da autoridade destacado distinguir se o facínora acaba de sair com intenções criminosas ou simplesmente para ir comprar um gelado? Presumo que o senhor agente verificará cuidadosamente da existência ou não de um collant negro enfiado na cabeça do suspeito, já que tal será certamente um acessório indispensável num assalto a um banco, mas não dá grande jeito na gelataria. Ninguém percebe quantas bolas queremos no cone.
Aplaudo sem reservas. Consciente de que nas casas dos cidadãos de bem, depois de uma crise financeira e anos de consistentes furtos, há cada vez menos artigos que valha a pena vigiar, a polícia prefere concentrar esforços nos locais mais bem fornecidos. A proposta, no que é aliás uma óbvia vantagem durante o verão, é refrescante: as populações sentem-se mais seguras, os ladrões obtêm uma vigilância grátis para os seus próprios pertences residenciais – algo não negligenciável se pensarmos que os integrantes desta classe profissional escolhem muitas vezes zonas arriscadas para viver – e a polícia estará mais perto dos seus clientes, que conhece tão bem a ponto de saber quem são e onde moram, sem querer no entanto ir ao ponto de prendê-los e arriscar assim ficar sem missão e emprego. Afinal, se o Joker estivesse sempre encarcerado, o Batman seria apenas um tipo que se veste de morcego e guia um carro de tuning esquisito.
Claro que anunciar publicamente que as casas dos criminosos vão ser vigiadas durante o verão pode levar alguns meliantes que sejam consumidores de tv ou jornais a, digamos, alterar o seu código postal de residência e ir dormir para outro sítio. Numa altura em que as associações hoteleiras se queixam de uma quebra de reservas na ordem dos 10%, este incentivo ao turismo interno só pode ser considerado bem-vindo.
O único ponto da medida que me suscita, confesso, algumas dúvidas prende-se com aqueles momentos – felizmente raros – em que o suspeito identificado sai de sua casa. Como conseguirá o agente da autoridade destacado distinguir se o facínora acaba de sair com intenções criminosas ou simplesmente para ir comprar um gelado? Presumo que o senhor agente verificará cuidadosamente da existência ou não de um collant negro enfiado na cabeça do suspeito, já que tal será certamente um acessório indispensável num assalto a um banco, mas não dá grande jeito na gelataria. Ninguém percebe quantas bolas queremos no cone.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Não há muitos motivos para estar contente
Ainda as eleições europeias. Para quem goste da Europa, como conceito e como projecto, as eleições não ofereceram grandes motivos de regozijo; as reacções e análises posteriores vieram acrescentar alguns pontos de melancolia a quem sonha com uma grande democracia europeia, participada, interessada, dinâmica e conhecedora. Nenhum destes objectivos parece ser muito bem servido pelas eleições de 2009.
Desde logo, não houve eleições europeias mas sim 27 eleições nacionais simultâneas. Nas (relativamente pobres) campanhas eleitorais, os temas nacionais, locais ou simplesmente patetas eclipsaram os assuntos que os cidadãos iriam no fundo decidir com o seu voto, como as políticas económicas coordenadas, as alterações climáticas, o nível de integração europeia, onde ficam as fronteiras do continente e quão abertas elas devem ser, o lugar da Europa – e o seu poder – num mundo em acelerada mutação... Lembrar-se-á o leitor de ver o(s) candidato(s) em que votou explanar o que pensa sobre estes assuntos? Se sim parabéns, não é fácil.
Reacção dos votantes: não aparecer à cena. Uma campanha tão negativa como a que por exemplo decorreu em Portugal não inspira muita gente a pronunciar-se, nem transmite a importância de um Parlamento Europeu que produz já dois terços da legislação de cada país e que, se o Tratado de Lisboa for aprovado e entrar em vigor para o ano, verá os seus poderes muito acrescidos – poderes esses que serão entregues aos deputados que acabam de ser eleitos. Apenas 43,24% dos europeus que podiam votar o fizeram, o que é um recorde negativo (em Portugal foram apenas 37%, o que não nos deixa ficar bem na fotografia e motivou um discurso duríssimo do Presidente da República contra “aqueles que baixam os braços numa atitude resignada”). E é fraco consolo pensar que nos Estados Unidos, por exemplo, ainda menos gente se arrasta para votar.
Este desinteresse dos eleitores provoca estragos a dois níveis: um de legitimidade – o Parlamento Europeu representa bem todos os europeus? – e outro de capacidade, pois a abstenção elevada favorece os partidos extremistas e populistas que infestam o novo Parlamento com a sua agenda de ódios – ódio à Europa, à globalização, à imigração, aos países vizinhos do seu, ao diferente, à mudança e ao futuro. E porque não se pode estar sistematicamente contra o futuro, é tão importante – essencial mesmo – que as eleições europeias sejam repensadas e melhoradas. Voltarei a este assunto com sugestões.
Desde logo, não houve eleições europeias mas sim 27 eleições nacionais simultâneas. Nas (relativamente pobres) campanhas eleitorais, os temas nacionais, locais ou simplesmente patetas eclipsaram os assuntos que os cidadãos iriam no fundo decidir com o seu voto, como as políticas económicas coordenadas, as alterações climáticas, o nível de integração europeia, onde ficam as fronteiras do continente e quão abertas elas devem ser, o lugar da Europa – e o seu poder – num mundo em acelerada mutação... Lembrar-se-á o leitor de ver o(s) candidato(s) em que votou explanar o que pensa sobre estes assuntos? Se sim parabéns, não é fácil.
Reacção dos votantes: não aparecer à cena. Uma campanha tão negativa como a que por exemplo decorreu em Portugal não inspira muita gente a pronunciar-se, nem transmite a importância de um Parlamento Europeu que produz já dois terços da legislação de cada país e que, se o Tratado de Lisboa for aprovado e entrar em vigor para o ano, verá os seus poderes muito acrescidos – poderes esses que serão entregues aos deputados que acabam de ser eleitos. Apenas 43,24% dos europeus que podiam votar o fizeram, o que é um recorde negativo (em Portugal foram apenas 37%, o que não nos deixa ficar bem na fotografia e motivou um discurso duríssimo do Presidente da República contra “aqueles que baixam os braços numa atitude resignada”). E é fraco consolo pensar que nos Estados Unidos, por exemplo, ainda menos gente se arrasta para votar.
Este desinteresse dos eleitores provoca estragos a dois níveis: um de legitimidade – o Parlamento Europeu representa bem todos os europeus? – e outro de capacidade, pois a abstenção elevada favorece os partidos extremistas e populistas que infestam o novo Parlamento com a sua agenda de ódios – ódio à Europa, à globalização, à imigração, aos países vizinhos do seu, ao diferente, à mudança e ao futuro. E porque não se pode estar sistematicamente contra o futuro, é tão importante – essencial mesmo – que as eleições europeias sejam repensadas e melhoradas. Voltarei a este assunto com sugestões.
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terça-feira, 2 de junho de 2009
O sofá de veludo de 1979
O Parlamento Europeu criou um sítio web expressamente dedicado às eleições europeias deste domingo (isto no Luxemburgo ou em Portugal; os Países Baixos e o Reino Unido dão o pontapé de saída já na quinta-feira). Talvez a característica mais interessante que lá figura seja a "máquina do tempo": uma comparação directa entre 1979, data das primeiras eleições directas para o Parlamento Europeu, e ano da graça de 2009. Ali podemos ver duas fotos da mesma sala de estar – simbolizando a nossa "casa comum", a Europa – a primeira em estilo muito 70s, no seu papel de parede com motivos laranja e os sofás em veludo faux castanho, e a segunda resplandecente de branco nos seus móveis Ikea e no enorme ecrã plasma. Dentro da imagem, cada item em que clicamos – desde as latas de bebidas até à foto emoldurada na parede – permite ao cidadão obter uma ideia muito genérica da evolução da construção europeia em várias áreas nos últimos 30 anos.
E esta comparação, desde o que fazemos com a energia à mobilidade ou a defesa pela ecologia, dá algum reconforto - mas só nos primeiros segundos, pois logo em seguida vem à ideia que decisões fundamentais para nossa vida são tomadas em contínuo e está tudo por fazer. E é disso que se trata numas eleições onde quase 500 milhões de europeus vão escolher os seus representantes para uma câmara democrática e diversa cujos poderes não param de aumentar. Só nos dois últimos meses, foram adoptadas resoluções tão diversas e de alcance tão global como um pacote legislativo de telecomunicações, sempre na perspectiva da defesa do consumidor, ou a proibição do comércio de carne de foca (que levou uma ministra do Canadá, país que mata a maioria das focas no Ártico, a comer um coração de foca cru em frente às câmaras).
As eleições europeias têm perdido paulatinamente participação a cada escrutínio e, embora seja provável que essa tendência se venha a inverter esta semana, tal é reflexo de vários factores. Os eleitores estão fartos de "política" (uma palavra nobre que hoje quase soa obscena) e perderam a sentido da "res publica", bem como a ilusão de poder influenciar o estado das coisas. E é verdade que instituições europeias geograficamente distantes e que não conseguem deixar de ser vistas como algo autistas, visão que é empurrada por um punhado de deputados europeus pouco activos, não ajudam. Pois bem, é altura de começar a olhar para a metade do copo que está cheia, é isso que nos lembra a "máquina do tempo" (em http://www.eleicoes2009.eu); graças a estas eleições, a definição dos próximos 5 anos, na Europa e no mundo, começa por nós. Não estou a ver o que possa ser mais importante de fazer no domingo.
As eleições europeias têm perdido paulatinamente participação a cada escrutínio e, embora seja provável que essa tendência se venha a inverter esta semana, tal é reflexo de vários factores. Os eleitores estão fartos de "política" (uma palavra nobre que hoje quase soa obscena) e perderam a sentido da "res publica", bem como a ilusão de poder influenciar o estado das coisas. E é verdade que instituições europeias geograficamente distantes e que não conseguem deixar de ser vistas como algo autistas, visão que é empurrada por um punhado de deputados europeus pouco activos, não ajudam. Pois bem, é altura de começar a olhar para a metade do copo que está cheia, é isso que nos lembra a "máquina do tempo" (em http://www.eleicoes2009.eu); graças a estas eleições, a definição dos próximos 5 anos, na Europa e no mundo, começa por nós. Não estou a ver o que possa ser mais importante de fazer no domingo.
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domingo, 17 de maio de 2009
Abrir os olhos
A morte de uma senhora de 95 anos, ocorrida no mês passado, recordou-me do aparentemente simples facto de vivermos num mundo controverso mas sempre extraordinário, pelo menos a partir do momento em que o sabemos perscrutar como ele merece.
A senhora em questão era alguém de especial. Chamava-se Helen Levitt, habitava o mesmo quarto andar sem elevador onde tinha vivido com os seus gatos por 80 anos e continuava a ser fotógrafa, carreira que tinha iniciado nos anos 1930 por influência romântica de outro dos grandes nomes da arte, o francês Henri Cartier-Bresson. Impressionada pelas condições de vida numa América a lamber as feridas da Grande Depressão e sugestionada pelos desenhos infantis a giz nos passeios, Helen comprou em segunda mão a mesma máquina fotográfica que tinha visto nas mãos de Bresson (uma Leica 35 mm) e começou a tirar instantâneos, revelados em casa, a crianças de rua em Nova Iorque. A cidade não mais a largaria, ou vice-versa; as suas ruas, nomeadamente as mais pobres, as esquecidas, as mais sujas e perigosas eram também aos seus olhos as mais fotogénicas e artísticas, a sua improvável parte do mundo retratada de forma tão crua como bela, filtrada pelo preto-e-branco. A cor só chegaria às suas fotos nos anos 1960, eram já as ruas diferentes: as crianças tinham trocado o giz pelo sofá e pela televisão, os carros já não eram abandonados mas omnipresentes. As fotos, em vez de retratarem armazéns abandonados, pequenos farrapos de céu e ausência de árvores, passaram a jogar com correspondências, por exemplo entre portas verdes e sapatos de salto alto vermelhos. Celebrando ainda e sempre as paisagens urbanas e a fauna que nelas habita.
Edward Steichen, já em 1941 um nome maior da arte fotográfica, viu nela uma discípula de talento e, nesse mesmo ano, foi o curador da sua primeira exposição. Steichen doou em 1973 ao Luxemburgo (de onde emigrou aos dois anos de idade para os EUA) a grande exposição “The Family of Man”, representando a vida, o amor e a morte em 68 países diferentes. Que ninguém deixe de passar por Clervaux para a ver e rever. Mas não tenho a certeza de como reagiriam Steichen, Bresson ou Levitt passeando pelas anódinas ruas luxemburguesas de hoje, submersos na previsibilidade, quase artificialidade do extremo bem-estar. Nós próprios necessitamos de reunir todo o talento e alma dos grandes visionários se queremos abrir os olhos para a beleza aqui encerrada.
A senhora em questão era alguém de especial. Chamava-se Helen Levitt, habitava o mesmo quarto andar sem elevador onde tinha vivido com os seus gatos por 80 anos e continuava a ser fotógrafa, carreira que tinha iniciado nos anos 1930 por influência romântica de outro dos grandes nomes da arte, o francês Henri Cartier-Bresson. Impressionada pelas condições de vida numa América a lamber as feridas da Grande Depressão e sugestionada pelos desenhos infantis a giz nos passeios, Helen comprou em segunda mão a mesma máquina fotográfica que tinha visto nas mãos de Bresson (uma Leica 35 mm) e começou a tirar instantâneos, revelados em casa, a crianças de rua em Nova Iorque. A cidade não mais a largaria, ou vice-versa; as suas ruas, nomeadamente as mais pobres, as esquecidas, as mais sujas e perigosas eram também aos seus olhos as mais fotogénicas e artísticas, a sua improvável parte do mundo retratada de forma tão crua como bela, filtrada pelo preto-e-branco. A cor só chegaria às suas fotos nos anos 1960, eram já as ruas diferentes: as crianças tinham trocado o giz pelo sofá e pela televisão, os carros já não eram abandonados mas omnipresentes. As fotos, em vez de retratarem armazéns abandonados, pequenos farrapos de céu e ausência de árvores, passaram a jogar com correspondências, por exemplo entre portas verdes e sapatos de salto alto vermelhos. Celebrando ainda e sempre as paisagens urbanas e a fauna que nelas habita.

Edward Steichen, já em 1941 um nome maior da arte fotográfica, viu nela uma discípula de talento e, nesse mesmo ano, foi o curador da sua primeira exposição. Steichen doou em 1973 ao Luxemburgo (de onde emigrou aos dois anos de idade para os EUA) a grande exposição “The Family of Man”, representando a vida, o amor e a morte em 68 países diferentes. Que ninguém deixe de passar por Clervaux para a ver e rever. Mas não tenho a certeza de como reagiriam Steichen, Bresson ou Levitt passeando pelas anódinas ruas luxemburguesas de hoje, submersos na previsibilidade, quase artificialidade do extremo bem-estar. Nós próprios necessitamos de reunir todo o talento e alma dos grandes visionários se queremos abrir os olhos para a beleza aqui encerrada.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Prender a respiração só por mais alguns anos
Gostaria muito de inaugurar este espaço com boas notícias. E não haveria melhor notícia para dar do que esta, fresca, desejada, em primeiríssima mão: a crise terminou. A depressão tornou-se euforia, os cortes em expansões e os empregos multiplicam-se como cogumelos. Podemos – e devemos, trata-se de um imperativo moral – desatar todos a consumir como se os amanhãs cantassem outra vez.
Mmh, admito, poderia estar a antecipar a boa nova na pressa de ser o primeiro a apontá-la, mas tanto optimismo induzido não seria muito diferente do que nos últimos tempos foi possível ouvir de pessoas com responsabilidades na matéria. O presidente americano, Barack Obama, fala em “brilho de esperança” – mas apenas porque a produção e o mercado imobiliário já não estão a cair tão rapidamente. A ministra da Economia britânica falava há tempos nos “primeiros indícios” da recuperação – no mesmo dia em que, só para contrariar como habitualmente, grandes empresas inglesas anunciaram despedimentos e a Bolsa caiu 5%. Os media? Igualmente confusos (“Sinais vindos dos EUA indicam que o pior pode já ter passado”, anuncia o “Público” a 1 de Maio; “Investimento cai e recessão agrava-se nos EUA”, manchete do “Le Monde” a 2 de Maio). BCE, FMI, pelas vozes com forte sotaque francês dos seus presidentes, prevêem que daqui a um ano a retoma apareça algures pelos Estados Unidos, enquanto vão avisando que hoje em dia é muito difícil fazer previsões. No entanto, como em economia repetir muitas vezes e a muita gente que “as coisas vão melhorar” pode mesmo contribuir para que elas melhorem, professa-se a fé inabalável em que os incertos e difíceis tempos de contracção em que vivemos vão acabar rapidamente.
A sóbria realidade: mesmo quando acabarem, não terão acabado. Nas economias ocidentais o desemprego dispara actualmente para níveis (muito) superiores a 10% da população activa. A recessão de 2001 (muito mais fraca que a actual) durou oficialmente apenas 8 meses, mas o desemprego continuou a crescer durante mais ano e meio. O mesmo se passou em 1991 e o mesmo, só que de forma muito mais prolongada, acontecerá desta vez. Porque o crescimento anémico não é suficiente para gerar emprego e por outras variadas razões, mas também porque as nossas sociedades são baseadas no consumo narcotizante e hoje ninguém está para grandes compras.
Se eram boas notícias as que eu procurava, deveria ter escolhido outro assunto.
Mmh, admito, poderia estar a antecipar a boa nova na pressa de ser o primeiro a apontá-la, mas tanto optimismo induzido não seria muito diferente do que nos últimos tempos foi possível ouvir de pessoas com responsabilidades na matéria. O presidente americano, Barack Obama, fala em “brilho de esperança” – mas apenas porque a produção e o mercado imobiliário já não estão a cair tão rapidamente. A ministra da Economia britânica falava há tempos nos “primeiros indícios” da recuperação – no mesmo dia em que, só para contrariar como habitualmente, grandes empresas inglesas anunciaram despedimentos e a Bolsa caiu 5%. Os media? Igualmente confusos (“Sinais vindos dos EUA indicam que o pior pode já ter passado”, anuncia o “Público” a 1 de Maio; “Investimento cai e recessão agrava-se nos EUA”, manchete do “Le Monde” a 2 de Maio). BCE, FMI, pelas vozes com forte sotaque francês dos seus presidentes, prevêem que daqui a um ano a retoma apareça algures pelos Estados Unidos, enquanto vão avisando que hoje em dia é muito difícil fazer previsões. No entanto, como em economia repetir muitas vezes e a muita gente que “as coisas vão melhorar” pode mesmo contribuir para que elas melhorem, professa-se a fé inabalável em que os incertos e difíceis tempos de contracção em que vivemos vão acabar rapidamente.
A sóbria realidade: mesmo quando acabarem, não terão acabado. Nas economias ocidentais o desemprego dispara actualmente para níveis (muito) superiores a 10% da população activa. A recessão de 2001 (muito mais fraca que a actual) durou oficialmente apenas 8 meses, mas o desemprego continuou a crescer durante mais ano e meio. O mesmo se passou em 1991 e o mesmo, só que de forma muito mais prolongada, acontecerá desta vez. Porque o crescimento anémico não é suficiente para gerar emprego e por outras variadas razões, mas também porque as nossas sociedades são baseadas no consumo narcotizante e hoje ninguém está para grandes compras.
Se eram boas notícias as que eu procurava, deveria ter escolhido outro assunto.
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