terça-feira, 18 de outubro de 2011

A choldra de Eça

O Estado português acaba, no momento em que escrevo estas linhas, de apresentar o seu orçamento para o ano da graça de 2012. É um documento fascinante, pois representa, até certo ponto, uma confissão de falhanço. Falhanço do Estado português como projecto e como essência de algo mais vasto. É também, naturalmente, uma leitura de terror, prevendo uma contracção da economia portuguesa de 2,8% em 2012, no que será a pior performance dos anos da democracia (partindo do princípio de que Portugal ainda será uma democracia em 2012, claro), só comparável ao "ano da brasa" de 1975; conjugado com a recessão de 2011 ("apenas" -1,9% do PIB), o país como um todo vai perder quase 5% da sua riqueza em apenas dois anos, sensivelmente a mesma riqueza que foi penosamente criada ao longo dos anteriores sete (a partir de 2002).

Ainda não está chocado com estes números a grosso? Bem, o documento do governo prevê também que o desemprego atinja 13,4% da população activa. Trata-se tão-somente da maior percentagem desde a ditadura (quando grande parte dos portugueses perdia a vida guerreando em África e outra parte tinha de emigrar clandestinamente para fugir à miséria). Vai permitir a Portugal ultrapassar a Irlanda e a Eslováquia e tornar-se a segunda economia ocidental com mais desempregados (apenas atrás da Espanha). E claro, os valores da emigração - desta feita jovem e qualificada - não páram de acelerar.


Os impostos aumentam vertiginosamente, o investimento público cai a pique, os salários são cortados, os preços dos bens essenciais (e dos outros) sobem. O Estado central concentrará uma percentagem ainda maior do orçamento, mas ainda assim Lisboa é a região que mais dinheiro deve (bem mais que a Madeira, em segundo).

Tudo isto em nome do mantra neoclássico do "combate ao défice". O défice tem pais e mães, e eles são fáceis de identificar: a clique do Terreiro do Paço, aquela que vive de um Estado central que emprega 11% dos portugueses, esmagadoramente concentrado na burocrática capital; a malta que gravita entre governo, empresas públicas, e empresas privadas à sombra de dinheiros públicos, que arranja emprego por conhecimentos e passa uma vida a amamentar-se na torneira do Estado, até que se reforma... e continua a fazê-lo. O pântano dos institutos públicos, das fundações, das parcerias público-privadas, organismos que em comum têm o estarem baseados em Lisboa e beneficiarem a capital utilizando os impostos de todos. São os mesmos que fazem negócios escuros na Expo, no Centro Cultural de Belém, num novo e inútil aeroporto a ser construído em terrenos pertencentes a políticos ou numa linha de TGV que duplica uma autoestrada vazia para que um lisboeta possa ir passear a Madrid, ou ainda num metropolitano em que cada nova estação custa tanto como uma rede completa noutra cidade qualquer. São eles os implicados no processo Face Oculta e num banco privado, o BPN, salvo com dinheiro dos seus impostos para que alguns amigalhaços não perdessem os seus investimentos de risco. George Orwell satirizou-os cruelmente em "O Triunfo dos Porcos". O grande Eça de Queiroz era mais certeiro e mais prosaico - chamava-lhe "a choldra".

2 comentários:

  1. Não podia estar mais de acordo!
    Viva Portugal! :/

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  2. É pena que este tipo de análise apenas se veja pela Blogosfera... É altura de se perceber o que se passa e de nos vermos livres da "Choldra"!

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