terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A minha memória é patrocinada pelo Google

Não sei se o caro leitor terá visto um filme recente chamado "Hugo". Se o nome do filme é obviamente belíssimo, o filme propriamente dito é apenas giro; o que é surpreendente nele, tendo em conta a doçura do argumento, é ser da autoria de Martin Scorsese, um realizador "duro", autor de grandes clássicos do cinema violento como por exemplo... erm... hum...
Scorsese é um dos meus realizadores favoritos, e vi a maior parte dos seus filmes. Mas quando enviei ao meu cérebro, anteriormente tão prestável, o pedido para que me fornecesse uma lista de exemplos das grandes obras do cineasta, a massa cinzenta recusou-se. A resposta que obtive foi algo do género: "tens um écrã com internet nas mãos. Faz lá uma busca no Google por ". O cérebro tinha, sem me ter antes perguntado a opinião, apagado essa informação da memória, e no seu lugar ficou apenas a lembrança de como a obter (no sítio do costume).

Não se trata de um caso isolado. Em 2008, o escritor Nicholas Carr escreveu como tema de capa numa grande revista americana um ensaio intitulado "Estará o Google a tornar-nos estúpidos?". O texto serviu de pontapé de saída para um debate apaixonado sobre os vastos, e ainda pouco analisados, efeitos da internet no nosso sistema neurológico. Carr confessou ter "uma sensação desconfortável como se alguém, ou algo, tivesse passado os últimos tempos a mexer no meu cérebro, reiniciando os circuitos neurais e reprogramando a memória. A minha mente está a mudar". O artigo continua descrevendo como a leitura absorta de longos livros se tornou impossível, já que a concentração se esvai ao fim de poucas páginas, e a mente começa a procurar algo de diferente para fazer - sentimentos que todos nós bem conhecemos - e termina de forma pessimista, prevendo que a tradição da cultura ocidental e das suas "estruturas mentais em forma de catedral", altamente elaboradas e complexas, seja preterida em favor de um novo tipo de "pessoa-panqueca", uma massa plana e fina, pronta a ligar-se com um clique à vasta rede de informação. Uma espécie de inteligência artificial achatada.

Imediatamente alguns dos melhores teóricos da tecnologia saltaram a terreiro para dar a sua contribuição para este debate. David Wolman, na Wired, colocou-se no extremo oposto: afirmou que Carr não passava de alguém incapaz de lidar com a actual sobrecarga de informação, e que as suas dúvidas eram por ele resolvidas da forma clássica (e errada): culpando a tecnologia mais recente. De facto, todas as invenções revolucionárias do conhecimento humano, desde a escrita até ao automóvel, passando pela imprensa e pelo telefone, rádio e tv, tiveram os seus críticos mais ou menos românticos clamando pelo fim dos tempos - ou pelo menos, temendo o enfraquecimento do pensamento, da espiritualidade e da reflexão.

Existe um ponto de concórdia entre as distantes visões sobre os efeitos da internet na forma como o cérebro funciona: eles existem. Ou seja, o nosso cérebro, órgão infinitamente plástico, adapta-se constantemente a novos hábitos e possibilidades, e sabemos que após estes curtos 15 anos de massificação da internet já pensamos de forma diferente - e mais caótica. O que não quer dizer que tal seja pior: temos agora mais espaço na cabeça para outro tipo de informação que não listas de filmes. E ao fazer a tal busca por "Scorsese", descobri que o próximo projecto do realizador, um filme histórico sobre dois jesuítas portugueses no Japão, promete ser interessante...

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