terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Costa Discórdia

Naufrágios sempre foram catástrofes fortíssimas que nos tocam de forma diferente do que outras. Talvez isso tenha a ver com termos construído uma certa ideia global de portugalidade intimamente ligada ao mar oceano, construção essa que foi paga em lágrimas salgadas por muitos barcos afundados e vidas perdidas. Ou talvez seja simplesmente porque um barco gigantesco, majestoso, que repentinamente decide mergulhar em direcção às profundezas nos recorda metáforas incómodas sobre a vida. Mas de facto podemos compreender George Orwell: o escritor era uma criança quando o Titanic afundou, em 1912, mas os pormenores do drama, as histórias dos sobreviventes, a imagem do navio numa última e impossível posição vertical antes de arrastar consigo para o fundo 1514 pessoas exerceram sobre ele um fascínio aterrador muito mais duradouro que as guerras mundiais que se seguiram.

O Titanic afundou-se há exactamente um século atrás; há duas semanas foi o Costa Concordia (um navio que era na realidade maior que o Titanic, três vezes mais pesado e transportava o dobro dos passageiros) a fazê-lo. A História repete-se sempre - mas da segunda vez, como farsa: a viagem de cruzeiro não tinha outro propósito que não o puro lazer, e a colisão do navio deu-se apenas duas horas após a sua largada. Aliás, as comparações entre Titanic e Costa Concordia não fazem com que os nossos tempos fiquem bem na fotografia. Este acidente deu-se por razões de pura vaidade - a pirosice de querer saudar os trausentes, fazendo o barco passar a poucos metros de uma ilha rochosa em vez dos programados 5 km... Mas ainda acima disto, levanta questões mais agudas que se levantam têm a ver com a responsabilidade individual e colectiva.

EJ Smith, o capitão do Titanic, foi ao fundo com o seu navio, como exigia a ética dos seus tempos — a mesma que permitiu salvar muito mais passageiros da 1.ª classe que das 2.ª e 3.ª, mas isso já é outra história. Schettino, o "fanfarrão" (como ficou conhecido), não lhe podia estar mais distante: provocou o acidente com a sua rota perigosa (alegando agora que tal foi um pedido da companhia); nada decidiu, entrou em pânico e refugiu-se na sua cabina "para ir buscar alguns pertences"; escondeu da companhia a verdadeira dimensão do problema; tardou uma longa hora em dar a ordem de abandono do navio; e pirou-se do mesmo o mais rápido que conseguiu, quando centenas de pessoas ainda lá estavam encerradas, algumas delas para sempre. Agora alega que "escorregou e caiu dentro de um bote salva-vidas" (curiosamente, aconteceu o mesmo ao seu primeiro oficial de bordo).

As perguntas são: como é possível que a este homem seja confiado o barco-estrela da companhia, capaz de acolher 5000 almas? Que terá feito este homem para alcançar tal relevante posição entre tantos outros que detêm a responsabilidade, competência, ética e bravura que ele demonstra nunca ter tido? A conversa gravada entre Schettino e De Falco, o homem da capitania do porto que lhe grita para voltar ao navio ("quer ir para casa, é? Está escuro e quer ir para casa? Volte para bordo, car...!") não contém as respostas, mas dá-nos algo mais importante: a reconciliação, a capacidade de voltarmos a acreditar nas pessoas e nas qualidades humanas. De Falco é agora um herói instantâneo em Itália, e a sua esposa proferiu as palavras mais sensatas da semana: "É preocupante que pessoas como o meu marido, que simplesmente cumprem o seu dever e fazem o seu trabalho, se tornem ídolos e personalidades. Isso não é normal". Mas quem disse que vivemos tempos normais?

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