terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Prazeres tolerados

Não é linear defini-lo, mas há algo de essencial em beber um bom vinho durante uma calorosa festa de Natal. Por receio de aumentar os problemas que o álcool pode causar, tal nunca é dito publicamente - o que é compreensível, mas exagerado.

Mas vamos por partes; antes de mais, desejo que o caro leitor tenha passado mais um belo Natal, rodeado por pessoas de quem gosta. A espiritualidade da data, estando também relacionada com os ciclos da natureza, deve muito ao solstício de inverno e como tal pede recolhimento, calor e proximidade humanas, e um recarregar de baterias físicas, morais e espirituais após um ano inteiro de batalhas quotidianas.

Até aqui tudo óptimo. O que defendo é que para completar o quadro nada como acompanhar tudo com um suave néctar que vai acelerar o fluxo de sangue e oxigénio no corpo, inebriando-nos num estado de leve euforia que nos permitirá apreciar sobremaneira os prazeres simples da quadra.

Uma cerveja ao fim da tarde enquanto preparamos o reencontro com a família; um verde branco bem fresco para acompanhar as entradas de polvo à galega, um tinto encorpado do Douro ou Alentejo para complementar o bacalhau; um vinho do Porto LBV para arrendondar o fim da refeição, enquanto as garrafas de digestivos, desde aguardentes até rum passando por licores de amêndoa, vão sendo abertas para nos transportar com asas pela noite dentro.
É assim que, amiúde, a grande reunião familiar do ano proporciona momentos interessantes, memoráveis, até incontroláveis (no sentido positivo do termo). O escritor anglo-americano Christopher Hitchens, um autor altamente polémico até pelas suas opiniões cáusticas sobre religião, conhecia bem os traços do seu impossível carácter e usava o seu veneno preferido (uma marca específica de whisky) para, quando em sociedade, suavizar alguns - e afiar outros. E também para poder inspirar-se a escrever. Claro, Hitchens era um alcoólico: acaba de falecer, há menos de duas semanas, vitimado por uma doença invariavelmente relacionada com o consumo excessivo de álcool e tabaco. Há pouco tempo, sabendo que o estilo de vida que lhe tinha permitido chegar ao topo ia também acelerar o seu fim, confessou: "sim, eu sabia que o álcool continha riscos, mas decidi corrê-los porque ele acabava com os aborrecimentos... se agora me perguntasse: voltava a fazê-lo?, eu provavelmente responderia sim. É impossível imaginar a vida sem vinho a dar-me energia".

Os seus escritos eram brilhantes e a reputação como intelectual altíssima, mas Hitchens não era uma pessoa agradável, falava como um viciado, era um viciado. Não faço nenhuma apologia do consumo de álcool, nem isso alguma vez seria preciso nas nossas sociedades - Portugal, por exemplo, está perto do topo nos rankings mundiais de consumo por pessoa. A bebida está relacionada com inúmeros problemas difíceis de erradicar, desde os de saúde até os acidentes evitáveis ou a violência doméstica... E no entanto, sem exageros, com responsabilidade e apenas entre adultos, há algo de tradicionalmente alegre no torpor vínico de 25 de Dezembro. Admitamo-lo e disfrutemos.

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