quarta-feira, 13 de março de 2013

Bela visão

“Sabem que me escondo na Bellevue...”  Assim cantava romanticamente Rui Reininho, o mentor do Grupo Novo Rock (os GNR) em 1986, curiosamente o mesmo ano em que Portugal, depois de quase um século de isolamento auto-imposto, aderiu finalmente ao clube de países ricos conhecido por União Europeia.

Escondido até agora no seu Bellevue – o grandioso palácio berlinense que tem esse mesmo nome e que serviu nos últimas duas décadas como residência oficial da Presidência da Alemanha –, o actual ocupante do cargo, o antigo pastor de almas Joachim Gauck, surgiu repentino e sem aviso, sem aparato, sem pretenciosismo, subiu a um caixote metafórico e discursou. O discurso, proferido na sexta-feira, é importante pois provém do homem que serve de consciência moral ao país mais importante da União Europeia; e porque constitui um bálsamo inesperado para todos nós que pensamos que a Europa, mais e melhor Europa, é a solução, ou parte da solução, para muitos dos nossos problemas.

Gauck usou de uma pedagogia desarmante, e começou por constatar o que de tão óbvio é totalmente esquecido – nunca existiu tanta “Europa” como agora, mesmo mergulhados como estamos numa crise existencial (e material). Sim, a Europa vê-se hoje frequentemente reduzida aos problemas do euro; sim, há fúria nas ruas pela ameaça constante aos nossos empregos e ao nosso modo de vida; sim, há frustração pelas decisões distantes tomadas em Bruxelas por instituições opacas. Gauck concede que temos dúvidas sobre como continuar a nossa viagem, inseguros como estamos em relação a todo o edifício europeu devido a algumas brechas nas suas paredes. Mas sem se deter, o presidente alemão inicia uma descrição apaixonada da gesta comunitária, permitindo-se fazer uma cronologia do pós-guerra, do idealismo inicial baseado no projecto de paz (e no seu grito de “nunca mais!”) e chegando ao presente, quando Gauck interpela os estudantes que o ouvem: “a vossa primeira mesada foi em euros, vão aprender a falar duas línguas estrangeiras, podem receber uma bolsa para fazer Erasmus, aprendem lado a lado com outros europeus – e também se divertem juntos, em festivais de música ou nas nossas vibrantes cidades. Nenhuma outra geração pôde tanto afirmar-se como europeia”.

Mas a identidade europeia não é simples. Nunca houve um melting pot ao nível do continente, não veneramos a bandeira azul com estrelas douradas na escola ou no exército, não torcemos (ainda) pela selecção europeia de futebol. Não encontramos sobretudo o venerando Mito Fundador, uma narrativa comum tal como uma batalha contra um inimigo externo (as nossas guerras frequentes foram sempre fratricidas), ou uma revolução à escala continental. Não há apenas uma identidade europeia, e no entanto...

... ela move-se. Temos um conjunto inabalável de valores comuns pelos quais lutámos ao longo dos séculos e que exportamos para todo o mundo: a paz, a liberdade, o primado da lei, a igualdade, os direitos humanos, a solidariedade. Não são palavras ocas: estão no nosso ADN. E tal como Gauck, muitos sonham e eu também que esses são e serão os alicerces da nossa casa comum.

Na grande capital que é Berlim, no palácio de Bellevue, mora um homem de visão. Para a Europa, essa descoberta foi a melhor notícia da semana.

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