terça-feira, 19 de março de 2013

Corte de cabelo à máquina zero

Há algo de terrivelmente simbólico em rapar o cabelo. Visualmente, uma cabeça rapada é uma afirmação forte, porque traduz sempre um desequilíbrio preocupante: pode ser uma escolha própria devido a uma personalidade conturbada, pode ser um dano colateral do tratamento a uma doença, ou pode ser fruto de uma humilhação imposta de fora, uma demonstração de poder de quem manda cortar e uma penitência de quem fica sem cabelo.

Todos aqueles que detêm depósitos bancários num pequeno país europeu chamado Chipre acabam de sair tosquiados; no momento em que estas linhas são publicadas em papel, quarta-feira, os bancos cipriotas estarão a reabrir as portas para receber uma multidão em fúria, e cada um destes depositantes verá como a sua conta diminuiu 6,5% da noite para o dia (se lá estivessem menos de 100 000 euros, mas 9,9% se estivessem mais). O corte de cabelo (“haircut”, no jargão) foi imposto pela troika como condição para resgatar o país da bancarrota: como os europeus deixaram arrastar o problema de Chipre esperando que este se resolvesse sozinho ou desaparecesse por artes mágicas, as soluções são agora poucas e desagradáveis. Sem ajuda externa, os dois maiores bancos cipriotas iriam ao fundo ainda este mês; depois destes, desapareceria o resto do sistema bancário do país, e com este, a maior parte do dinheiro de todos os depositantes. Chipre viveria cenas dramáticas, motins como os ocorridos na Argentina em 2001. Esse cenário, obviamente, ainda não está posto de parte.

Ao contrário do coro de críticas em choque que se estão a levantar, penso que a ideia de obrigar os depositantes a participar no programa de ajustamento poderia, no caso concreto de Chipre, ter sido interessante. O pequeno país vive dos seus bancos; o dinheiro depositado é mais de sete vez o valor de toda a economia; e cerca de 40% desses depósitos provêm de estrangeiros não residentes, nomeadamente russos. Uma grande parte deste dinheiro está em Chipre em trânsito de forma a ser branqueado, não pagando impostos em parte alguma. Uma medida deste tipo, para além de ser altamente efectiva e angariar mais dinheiro, será menos dolorosa para os cipriotas que a tenaz que o governo de Lisboa está a aplicar aos portugueses: estes, entre ficarem sem serviços de saúde, subsídios de Natal ou férias, aumentos ou mesmo emprego, já pagaram muito mais pelo seu resgate do que uns meros 6,5% da sua conta bancária.

... só que os ininputáveis que nos (des)governam, da alto da insconsciência que passo a passo nos vai destruindo a Europa, partiram para a humilhação. E isso significou ultrapassar a linha vermelha de garantir os pequenos depósitos bancários (de 1 até 100 000 euros), custe o que custar, aconteça o que acontecer. Atentar à propriedade privada que está, ainda por cima, segurada significa  sacar dinheiro aos pequenos depositantes, às economias de uma vida, ao pecúlio das pessoas que constituem a economia real e são agora chamadas a pagar – de uma forma tão repentina como bem directa – as lavagens de dinheiro, os esquemas financeiros e a especulação desenfreada numa pequena ilha dividia que é, hoje, o maior investidor estrangeiro na imensa Rússia. Mas só em números, porque todo esse dinheiro tem origens misteriosas na própria Rússia.

Se nem as viúvas cipriotas estão imunes a um corte de cabelo financeiro, é tempo de colocar uma simples questão: que razão poderá ter, hoje, alguém de racional para deixar o seu dinheiro num banco do sul da Europa (de Portugal, por exemplo)? A resposta é: nenhuma. E o corolário: quanto tempo até que o sistema financeiro do Luxemburgo, afinal tão similar ao de Chipre, comece a tremer?

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