quarta-feira, 13 de março de 2013

Debaixo de olho

“O futuro já chegou há um bocado”, canta Manu Chao, provavelmente o parisiense que mais faz pela difusão da língua portuguesa pelo mundo. Até ao fim deste ano deve aparecer no mercado um pequeno produto que, a julgar pela excitação crescente que está a criar entre analistas e interessados pela tecnologia, nos vai empurrar com força para um futuro muitas vezes imaginado (em filmes de ficção científica série B, por exemplo) mas nunca experimentado: uns óculos que nos transmitem, mesmo defronte da pupila, informação em tempo real sobre o mundo que nos rodeia.

O Glass (óculo) é a actual menina dos olhos da Google, a empresa cuja ambição sem limites a obriga a procurar a “next big thing” que substitua o filão que é o mercado global de smartphones. O esforço da Google para despertar o interesse pelo seu futuro produto é tal que o seu co-fundador, Sergey Brin, acaba de os apresentar publicamente numa conferência onde toda a atenção acabou por recair na comparação que fez: usar estes óculos inteligentes será melhor do que andar a mexer em telefones, porque estes são “efeminados”. Depreende-se, portanto, que uns óculos pesados com uma grossa barra metálica sobre a sobrancelha direita e, perto do nariz,  uma luzinha vermelha acesa quando a câmara incorporada está ligada é muito de homem (e temo que tal seja absolutamente verdade – poucas mulheres se sentirão atraídas por um gadget tão inestético).

Os protótipos do Glass, a 1200 euros cada um, serão distribuídos um destes dias a uns poucos privilegiados que se dispuseram a testar o brinquedo – um brinquedo que a Google quer vender ao público, eventualmente por um valor mais baixo, a partir do Natal deste ano. Quem já escreveu sobre o tema garante, resumidamente, que o Óculo é a melhor invenção desde a sardinha assada: temos sempre debaixo de olho (literalmente) a próxima direcção a tomar, o tempo de amanhã ou as nossas mensagens. Podemos, com comandos de voz, perguntar aos óculos como dizer uma frase em russo, ou googlar qualquer outro assunto, e também podemos instruir os óculos para que tirem uma foto daquilo que estamos a ver nesse mesmo momento. E podemos partilhar instanteamente a foto com os nossos amigos. Até é possível fazer o mesmo com um vídeo de definição razoável.

Aqui começa a parte aterrorizadora do Glass. Porque o brinquedo inclui a capacidade de gravar vídeo (e som) de QUALQUER pessoa. Em QUALQUER lugar. Na rua, no metro, no trabalho, na praia, em casa – qualquer um de nós pode estar a ser filmado, sem sequer repararmos, por um tipo a usar um óculos esquisitos. Mas há pior. Os vídeos ficarão armazenados – para sempre – nos gigantescos servidores da Google, uma companhia que dispõe de tecnologia para os tratar e analisar; nomeadamente, uma tecnologia que permite o reconhecimento de caras, por exemplo a do leitor, com base em fotos suas que já estejam online. Ou seja, tudo o que o leitor fizer e disser por perto de um Óculo Google ligado pode ficar – automaticamente – associado ao perfil digital com o seu nome, e totalmente acessível após uma simples pesquisa na web. Para sempre. Sem que o leitor tenha forma de saber que isso aconteceu – e mesmo que o venha mais tarde a descobrir, sem poder fazer nada contra isso; sujeito a que a companhia que o quer contratar, ou o país para onde quer emigrar, não goste por exemplo da piada ousada que contou cinco anos antes a um amigo.

Sim, o futuro já chegou. E esse futuro é uma distopia orwelliana em que o novo nome do Big Brother é Google Glass.

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