Que os referendos estão na ordem do dia é inegável. E utilizados de forma sensata, eles podem completar na perfeição a democracia representativa ao devolver a palavra aos cidadãos em questões cruciais da sua vida e do seu futuro. Só que a tentação de os usar como arma de manipulação e arremesso é grande, até porque habitualmente isso resulta: na maior parte das vezes, os eleitores votam exactamente ao contrário daquilo que o governo em funções pretende. Mais do que coincidência, trata-se de castigo. Aconteceu em Portugal nos anos 90, com o "não" à regionalização (um voto que o país mais centralista da Europa Ocidental continua aliás a pagar bem caro). Aconteceu em Malta no mês passado: em referendo e contra as indicações do primeiro-ministro, os malteses aprovaram a possibilidade de divórcio, que ali era ilegal (deixando assim às Filipinas o curioso título de único país do mundo onde os casais não se podem divorciar). Em Itália aconteceu ontem: quatro perguntas em referendo, e a todas os italianos responderam com um rotundo "não!" ao desejado por Berlusconi (este, em mais um inédito, aconselhou os eleitores a irem à praia em vez de votar). Nomeadamente, a intenção do libertino primeiro-ministro italiano de reactivar as centrais nucleares do país foi rejeitada com 95% de votos, o que é de saudar em nome da segurança europeia e das energias renováveis.
Mas os melhores exemplos de desvirtuamento da opção referendária vêm da pequena Eslovénia. Neste país, convocar um referendo é relativamente simples: uma minoria de 30 deputados pode fazê-lo - e 40000 assinaturas de cidadãos também. Resultado: só nos últimos 12 meses os eslovenos foram chamados às urnas para dar o seu veredicto sobre cinco questões que poderiam ter sido decididas pelo parlamento - e em cada uma delas votaram ao contrário daquilo que o governo pedia. O caso mais burlesco aconteceu na semana passada com a formulação da questão "Concorda com a subida da idade mínima de reforma para os 65 anos?" - ou seja, a verdadeira pergunta feita aos cidadãos era: "Deseja trabalhar sem contrapartidas por mais 4 anos da sua vida, ou prefere que sejam as gerações futuras a arcar com o seu sustento enquanto inactivo?" Agora adivinhe o leitor qual foi o resultado deste referendo.
O processo eleitoral também serviu para carimbar a alternância democrática que encontrou, quase que por acaso, Pedro Passos Coelho no lugar certo e momento certo. O novo primeiro-ministro precisa agora de provar que é também o homem certo; uma incógnita num político de carreira que não suscitou grande entusiasmo nem mesmo entre as suas hostes. Supõe-se que os governantes primeiro demonstram qualidades, dimensão e ambição para finalmente serem eleitos como tal, mas Passos Coelho inverte a lógica: ele terá de rise to the occasion, ascender à altura da oportunidade que detém e do capital de confiança que lhe foi concedido. O desafio é duríssimo, sobretudo para quem andou a prometer "mudança": sabendo sempre que, entre abstenção recorde, brancos e nulos, e votos nos partidos rivais, só dois em cada dez portugueses com idade de votar o fizeram no seu PSD, o novo PM precisa de recuperar a (fortemente abalada) confiança do eleitorado na política, a crença das pessoas num futuro mais desejável, a legitimidade dos sonhos e da motivação dos que ainda os têm. Precisa de gerir uma coligação com o CDS, liderado por um político instável e sem conhecimentos de economia; precisa de ultrapassar, rápida e visivelmente, a sua própria inexperiência, tão evidente até agora. E tudo isto enquanto aplica um programa de governo desenhado pelo FMI que, entre algumas medidas óbvias e que já estavam atrasadas ontem (como a privatização da RTP, por exemplo), vai na sua sanha da mítica "austeridade" fazer encolher a economia, tornando mais enfermo o doente que se quer salvar. Está a acontecer na Grécia, hoje.

