terça-feira, 23 de outubro de 2012

E os burros somos nós?

Alegrem-se, caros leitores: o FMI fez uma descoberta. Uma daquelas descobertas tão surpreendentes, mas tão inesperadas, que merecem o título de verdadeira epifania.

Que descobriu o venerando FMI, némesis da justiça e carrasco do crescimento? Pois bem, que se enganou nas contas. Oh, um pequeno engano, nada de muito grave; foi apenas uma ligeira discrepância no "multiplicador". Em vez de 0,5 como era até aqui assumido pelos seus modelos teóricos, a vida real parece indicar que o verdadeiro valor desse mágico multiplicador pode chegar a ser 1,7. Isto significa que cada euro poupado pelos Estados em "consolidação fiscal", como lhe chama o FMI - mas que é melhor descrito pelos nomes menos eufemísticos de "austeridade", "cortes" ou "aumentos de impostos" - não reduz a actividade económica do país em 50 cêntimos, mas sim em 1,7 euros (no máximo) ou em 0,9 euros (na menos má das hipóteses). E por cada 1% do PIB ganho em austeridade, o investimento da economia é destruído em 2%, e o desemprego aumenta em 0,5%. Exemplo: se o ministro das Finanças português aumenta outra vez os impostos sobre a classe média de forma a que o Estado lisboeta esmifre, perdão, arrecade receitas correspondentes a 2% adicionais do PIB, tal quer grosso modo dizer que Portugal no seu todo vai perder 3,4% da sua economia, o investimento vai cair em 4% (o equivalente a três Autoeuropas), e aparecerão nas ruas 60 000 novos desempregados. Como se demonstra, um erro de cálculo de somenos importância.

Esquecendo a linguagem crua dos números, o que o FMI nos veio dizer, sobretudo a nós ocidentais, sobretudo a nós europeus, e sobretudo a nós portugueses foi: mea culpa. Desculpem lá qualquer coisinha, mas enganámo-nos(vos). Depois de cinco anos das nossas receitas neoclássicas, a economia mundial está num estado lastimável e - está escrito preto no branco no relatório Blanchard - os riscos de recessão global são cada vez maiores, sobretudo devido à péssima situação dos países que foram mais longe na sua consolidação fiscal, e que do fundo da sua espiral recessiva (menos produto quer dizer menos impostos e mais desemprego, logo maiores défice e dívida) vêem as suas metas cada vez mais distantes, não obstante os sacrifícios da população. Sem luz no fundo do túnel.

Há duas ironias insultuosas em tudo isto. A primeira é que esta confissão parte da instituição que historicamente mais aperta o garrote às sociedades em dificuldades - devido a isso e não sem algum humor, a presidente da Argentina veio à Europa aconselhar-nos a "fazer exactamente o contrário do que o FMI aconselhar". Como membro da famigerada troika, o FMI aplica em Portugal ou na Grécia - e aconselha para todos os outros em melhor situação - as mesmas políticas que admite agora terem efeitos devastadores.

A segunda ironia tem a ver com a arrogância daqueles que escolheram este caminho desastroso que estamos a trilhar, apresentado como a única escolha possível de alguém inteligente - e ainda há poucos dias António Borges, um dos mais sinistros representantes das elites a que temos direito, qualificou de "burros" todos os empresários que não concordavam com mais uma medida de austeridade à portuguesa. O relatório do FMI vem reequilibrar o debate, e ser-nos dada razão é sempre agradável, mas não passa de fraquíssimo consolo quando sabemos que é tarde demais - vivemos agora numa sociedade mais pobre e mais injusta, e a recuperação não será feita em uma década. Entretanto, assistiremos em breve ao cair no esquecimento deste relatório, enquanto salvaremos alguns bancos privados mais e sustentaremos vários exércitos de assessores e secretários de Estado com os nossos impostos cada vez mais altos. Os burros, realmente, só podemos ser nós.

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