terça-feira, 8 de março de 2016

O homem do Renascimento


"Look up here, I'm in Heaven". O homem que nos convida a olhar para cima e vê-lo no paraíso está num quarto sombrio, levitando sobre a cama. Tem um aspecto emaciado, a pele pálida e os olhos tapados por uma ligadura, enquanto sobre esta, no lugar dos olhos, estão dois botões negros. Mais acima, os cabelos em pé, agora prateados, não parecem em perigo. Pouco a pouco, o espectador percebe que aquele personagem é Lázaro, que biblicamente ressuscita quatro dias depois da sua morte; a música que acompanha o vídeo – um jazz negro vocal – tem por título “Lazarus”.

O nome do actor é David Bowie, representando-se a si próprio nas arrepiantes imagens que nos deixou apenas dias antes de morrer. “Lazarus”, o vídeo, foi gravado em apenas um dia de Novembro de 2015 – ou para ser mais preciso, em apenas cinco horas: os tratamentos que Bowie seguia tinham-no fragilizado a tal ponto que qualquer tempo a mais seria desaconselhável. E todos os cuidados com o seu belíssimo cabelo eram poucos, dado que após a quimioterapia existia o risco de qualquer puxadela o fazer cair em tufos.

O cantor sabia há seis meses que o seu cancro no fígado, possivelmente provocado por anos de abuso de drogas e tabaco, era terminal. Sabia, portanto, que não lhe restava muito tempo para completar o seu mais extraordinário projecto: um último trabalho que fosse muito mais do que um (excelente) álbum musical, constituindo um testamento público – e uma despedida macabra. Logo, Bowie acelerou, e aos que com ele trabalharam pediu o mesmo. Ao realizador de “Lazarus” avisou-o de que talvez viesse a ser necessário de um sósia para completar as filmagens; mas no vídeo final é mesmo o artista quem dança em pose, quem escreve febrilmente as suas ideias infinitas e quem canta “agora serei livre” antes de se enfiar dentro de um armário com fortes semelhanças a um caixão. Por um segundo, ainda vislumbramos a mão que lentamente fecha a porta sobre si. Nunca mais veremos Bowie.

“Blackstar”, o álbum aberto ao mundo a 8 de Janeiro (dia de aniversário de Bowie, e dois dias antes da sua morte), é música feita por um artista que contempla a sua própria sepultura. Pressentindo a chegada da morte, Mozart também procurou apressar o seu Requiem, sem sucesso. Beethoven, já surdo e fraco, completou ainda uma Grande Fuga que foi tão mal recebida publicamente que levou o grande compositor a alterar mais uma vez o final da Op. 130, o seu último trabalho. Bach, já no seu leito de morte, cego e a recuperar de um ataque cardíaco, não deixou de ser perfeccionista e ditou correcções a uma pequena peça coral, alterando-lhe também o nome para “Perante o Teu trono agora me apresento”. Uma forma serena e crente de terminar a vida e a carreira, diferente do dramatismo teatral e altamente mediático de David Bowie.

É que com ele desaparece também a possibilidade de um artista cativar toda uma geração, quase atingindo a impossível unanimidade de públicos completamente fragmentados numa miríade de estilos musicais diferentes. A carreira deste jovem de Brixton, em Londres, confunde-se com a própria História da música moderna, que seria bem diferente se o seu talento nunca tivesse sido descoberto. Tantos são – eu incluído, obviamente – os que têm a agradecer-lhe a “banda sonora das suas vidas”…

Bowie, o homem que estava sempre à frente do seu tempo, o “homem que tinha caído na Terra” (título do primeiro filme que protagonizou), era simultaneamente um génio renascentista pois destacava-se em diferentes campos artísticos, na imagem, no teatro, no cinema, na moda, até na pintura. A esta espécie de Da Vinci renascido das cinzas é inevitável prestar uma homenagem sentida no momento em que ele se torna a estrela negra que tinha profetizado, voltando às cinzas. Ashes to Ashes.

Submissão


“Submissão” de Michel Houellebecq é talvez o livro mais controverso de 2015. Numa macabra coincidência, o livro foi publicado em França no mesmo dia dos ataques ao Charlie Hebdo, o que o tornou estranhamente premonitório; ainda no mesmo dia, saiu uma entrevista do autor que afirmava “haver um desprezo total pelas autoridades neste país, e sente-se que tal não pode continuar. Algo terá de mudar. Não sei bem o quê, mas algo”.

Muita coisa mudou naquele dia odioso, e o livro, que é uma ficção política, acertou em cheio no seu nervo. A acção passa-se em 2022, e de forma a impedir a vitória da Frente Nacional de Marine Le Pen nas presidenciais, o Partido Socialista e a UMP aliam-se ao novo Partido da Irmandade Islâmica e ao seu carismático candidato, Mohammed Ben-Abbes, que vence e se torna Presidente de França. A terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade muda para sempre. Ben-Abbes proíbe professores não-muçulmanos, e o outrora “sexo fraco” reencontra o sentido destas palavras: a poligamia é legalizada, as mulheres proibidas de trabalhar, tornadas crentes forçadas e obrigadas a usar roupas “que não aticem o desejo”.

Por vezes a realidade ultrapassa a ficção; outras vezes imita-a. A presidente da Câmara usou quase as mesmas palavras no desastroso rescaldo das agressões sexuais ocorridas em Colónia na noite de passagem para o ano 2016, quando hordas de homens “de aspecto árabe” atacaram, roubaram, humilharam, apalparam e, pelo menos num caso, violaram as mulheres que apenas se queriam divertir e viver a vida numa cidade, país e continente onde, até agora, parecia ser possível fazê-lo. Mas de acordo com Henriette Heker, já não é: primeiro a burgomestre ficou muito perto de culpar as vítimas por terem sido agredidas, e alguns dias depois sugeriu um perfeitamente imbecil “código de conduta” para as mulheres de Colónia: não usar saias; ficar sempre à “distância de mais de um braço” de estranhos; ficar dentro “do seu grupo” (logo, não andar sozinhas); pedir ajuda a estranhos se estiverem ameaçadas. Um código de conduta provavelmente inspirado naquele vigente em áreas controladas pelos taliban ou pelo Daesh. Um código submisso.


A senhora Heker – e não é indiferente que se trate de uma senhora, pois um político homem não poderia ter proferido estas pérolas e manter-se num cargo público – atraiçoou todos os que a elegeram há apenas três meses, após uma campanha em que, pelas suas posições pró-imigração, foi esfaqueada por um homem desequilibrado. As cidadãs europeias não esperam que os seus líderes políticos as culpem por serem assaltadas e lhes cerceiem as liberdades de uma sociedade igualitária que levaram séculos a conquistar (tarefa ainda não terminada). E os europeus não esperam que a máquina do Estado, muito competente a controlar os impostos, a nossa utilização da internet ou o nosso tempo de estacionamento, se demita pura e simplesmente de garantir a ordem pública e a integridade física de quem nele vive, ao mesmo tempo que faz recair a maior parte do ónus da absorção e integração de um gigantesco fluxo de refugiados nos mesmos cidadãos. Construímos as sociedades mais justas e livres do planeta e esperamos que quem nos lidera seja pelo menos capaz de as defender tão bem como nós.

Mas esta é a visão de pormenor. Uma visão de conjunto realça questões políticas mais profundas, das quais a menor não será a inabilidade que a esquerda (sobretudo esta, mas também parte do centro-direita) tem em obter a quadratura do círculo: defender uma sociedade progressista, com igualdade de direitos, deveres e oportunidades, que defende a liberdade de pensamento, de culto ou simplesmente de ser diferente – e ao mesmo tempo, apregoar o direito alienável que as pessoas têm em fugir da guerra e da opressão, sendo acolhidas em locais mais afortunados sem serem vistas como uma praga de gafalhotos. Basta de ingenuidade, é necessário tomar opções difíceis, fazer muito mais junto de todas as partes interessadas, e sim – adoptar regras do jogo mais duras na admissão e controlo de quem quer viver na Europa. As alternativas residem em que, por razões erradas, todo o poder mude para mãos perigosas – de um lado os vários neonazismos, do outro o fundamentalismo islâmico, existe o perigo real de que o nosso futuro seja feito de submissão. Como nos livros premonitórios.

1916


Henry Ford, o homem que com métodos implacáveis ajudou a massificar o automóvel, via-se a si próprio como o protótipo do “Homem Novo” que iria ajudar a Humanidade a cortar com o passado e evoluir desenfreadamente. Nesse contexto, Ford afirmou, peremptório: “a História não passa de uma grande treta”. O industrial americano também famigerado pelo seu anti-semitismo viria mais tarde a tentar desculpar-se por estas palavras. O curioso é que a frase foi proferida exactamente há um século, em 1916 – um ano significativo como poucos, cheio de eventos desastrosos cujas consequências perduram até aos nossos dias.

O mundo tinha enlouquecido. A Grande Guerra tinha começado por disputas orgulhosas entre cabeças coroadas que, embora de impérios diferentes, pertenciam à mesma família (a excepção é o presidente francês Poincaré, talvez o principal instigador do início da catástrofe); os soldados mobilizados naquele outono de 1914 acreditavam jovialmente já poder vir passar aquele Natal a casa. Na verdade, milhões não passaram mais nenhum Natal na Terra, e em 1916 a guerra tinha mudado de natureza. A ideia de que a dinâmica ofensiva e a estratégia no terreno eram suficientes para derrotar defesas entricheiradas e equipadas com armas modernas estava, também ela, a morrer; no seu lugar tinha nascido, dos dois lados da barricada, uma convicção fatalista que a guerra era interminável, inútil e impossível de ser ganha, tendo-se transformado numa máquina trituradora cujo único propósito seria o de devorar carne para canhão.

Duas batalhas contribuíram decisivamente para se chegar a este ponto, batalhas cujos nomes viverão para sempre como sinónimos de infâmia: Verdun e Somme. Ambas se desenrolaram em 1916. Verdun foi, muito simplesmente, a batalha mais longa da História da Humanidade, 10 longos meses de Fevereiro a Dezembro que provocaram a morte de 700 000 franceses e alemães e traumas para a vida em muitos mais, 10 meses em que a aldeia de Fleury mudou de bandeira por 16 vezes, 10 meses após os quais os dois campos ocupavam exactamente as mesmas posições em que começaram. No Somme, a 1 de Julho, os britânicos sofreram o pior dia de sempre do seu exército (57 000 perdas, homens enviados com uma espingarda e um cantil contra uma impressionante barreira de canhões alemães) e a carnificina continuou por meses até tomar 1,5 milhões de vidas, vindas de todo o mundo para lutar pelo seu imperador e conquistar, no total, uns meros 9 km de terreno.


A combinação de lama, canhões, futilidade e mortes em massa fez mover para sempre as placas tectónicas de um mundo que não parou de acelerar desde então. Na frente leste, o império Austro-Húngaro desfazia-se aos poucos dando origem a um novo fenómeno que não parou de criar instabilidade desde então: o nacionalismo. Entretanto, a Alemanha, desejosa de se desfazer do czar russo e livrar-se assim de um inimigo, começa a apoiar um jovem revolucionário a preparar a sua tomada do poder: o seu nome era Lenine, e o mundo não mais será o mesmo.

Sem o saberem, as grandes potências europeias, ou seja a própria Europa enquanto centro do mundo, vivem em 1916 o seu último ano de uma supremacia global que se tinha iniciado com os Descobrimentos. Nesse ano a Irlanda revolta-se pela primeira vez, marcando o início do declínio de um império, o Britânico, onde “o sol nunca se punha”; será uma jovem nação ambiciosa, os Estados Unidos, a desequilibrar a balança da guerra e tomar o seu lugar, tornando-se o polícia do mundo. Mas a Europa não sairá de cena sem o seu canto do cisne: um diplomata britânico e um francês, o sr. Sykes e o sr. Picot, assinam um tratado que divide abruptamente o Médio Oriente em zonas de influência dos seus países. A divisão é feita em linhas rectas, sem olhar a povos, culturas ou religiões, criando um barril de pólvora permanente. Hoje, 100 anos depois, o Estado Islâmico desenvolve-se precisamente numa dessas fronteiras artificiais, entre a Síria francófona e o Iraque anglófono.

De 1916 a 2016, em linha recta.

O Cálice de Fogo


Em “Harry Potter e o Cálice de Fogo”, a escritora inglesa Jo Rowling desenvolve o sistema de personagens da sua série de ficção adolescente criada e largamente inspirada em elementos da cidade do Porto (onde Rowling vivia, teve uma filha e escreveu grande parte do primeiro volume da série, quando era ainda uma professora anónima e infeliz).


No livro, o fogo do título refere-se a um elemento místico, misterioso, insondável. Mas na vida real é frequente que o fogo nos recorde que ainda não está domado, demonstrando o seu lado implacável e voraz. Assim aconteceu há uma semana em São Paulo, quando um rápido incêndio destruiu o Museu da Língua Portuguesa. Um museu que, talvez mesmo sem o saber, todos nós partilhávamos. Um lugar de celebração deste nosso bem tão precioso, mas também de comunhão entre todos aqueles que temos a sorte de a falar, e de reverência para os mais dignos vultos que a elevaram aos píncaros, a ela, língua portuguesa, a quem Pessoa - objecto de uma magnífica retrospectiva no museu, ainda em 2010 - chamava poética e (também) amargamente "a minha pátria".

São Paulo, a maior cidade no mundo a falar português (com perto de 20 milhões de habitantes na sua área metropolitana, é também a mais populosa do continente americano e de todo o hemisfério sul), não é virgem nestes desastres culturais provocados pelo fogo – três outros locais importantes sofreram incêndios nos últimos anos, expondo falhas profundas ao nível da vigilância e do combate às chamas. Mas ver desaparecer o Museu da Língua Portuguesa é uma espinha cravada mais fundo, e desde logo pela beleza do edifício: construído no início do século XX, a imponente Estação da Luz tinha como missão centralizar os comboios da grande cidade – e o museu simbolizava a sua recuperação depois de meio século de decadência, iniciada por outro incêndio em 1946…

Este museu era diferente. As suas colecções eram interactivas, evolutivas, brincalhonas; ao invés de adoptar o tom sério e professoral com que tantas vezes, e sobretudo pelos portugueses, se ensina e se “vende” o português, o MLP celebrava a diversidade das diferentes versões, sotaques e utilizações da língua, procurando chamar a atenção para aspectos menos conhecidos da sua origem bem como da actualidade. Nunca se tinha feito um museu assim, voltado para a língua. Os brasileiros médios encontravam ali um enquadramento orgulhoso para este património que, mal ou bem, são os únicos a defender por esse mundo fora, quase sem ajuda dos portugueses; os portugueses saíam do museu com uma inconfundível sensação mista de orgulho e inveja, esta última por não terem sabido criar um espaço minimamente comparável; e mesmo quem não fala português ficava entretido com a sua sonoridade extraordinária e o seu lado lúdico passível de ser ali explorado, sem escusada reverência. Isso traduzia-se em ter Camões a partilhar a “praça da língua” com Chico Buarque, ou ver a cronologia de uma língua que parte de elementos do latim e do etrusco antigo até ser moldada pelas rimas de um rapper paulista, por exemplo.

Curiosamente, na saga de Harry Potter (bem traduzida para português, felizmente), ao livro sobre um “cálice de fogo” seguiu-se um livro sobre “a Ordem da Fénix”. E é exactamente uma fénix aquilo em que o museu se pode tornar, renascido das cinzas e tornado ainda mais forte. Devido à natureza interactiva e contemporânea do museu, todo o seu acervo estava já digitalizado e pode ser recuperado – ou seja, existe o proverbial backup. As perdas são sobretudo arquitectónicas, mas mesmo aí os poderes públicos brasileiros já garantiram a reconstrução do edifício (e o novo governo português, pela voz do ministro da Cultura, já prometeu apoio “no que puder”). A língua portuguesa merece-o, e nós, os seus utilizadores, os seus amantes, também; afinal, estamos cansados dos maus tratos que quotidianamente lhe são infligidos. Até pelo fogo!

O império contra-ataca


Talvez não haja nenhum anúncio televisivo mais inadvertidamente irónico que o da Volkswagen em 2011. A empresa alemã pagou então uma enorme soma de dinheiro pelos direitos de utilização das personagens de “Guerra das Estrelas”, e nomeadamente de Darth Vader. Na publicidade, uma criança disfarçada com a máscara do sinistro personagem descobre “a Força” que emana do (então) novo modelo Passat diesel, cuja grelha frontal tem oh-tantas-semelhanças visuais com o vilão mais conhecido da História do cinema.

Mas, como diria a canção, “que força é essa, que força é essa?” É uma força fraudulenta, conseguida à custa de emissões para o ar que respiramos de partículas altamente nocivas – e daí a suprema ironia de usar Darth Vader, um personagem com notórias dificuldades respiratórias - em concentrações que chegam a ser 40 vezes superiores ao anunciado, e o anunciado já seria muito mau... As partículas nem sequer constituem todo o problema, dado que os números oficiais de consumo e de emissões de dióxido de carbono nos motores a diesel também estão longe da negra fuligem da realidade; mas enquanto estes números só nos afectam indirectamente, as partículas de NOx matam-nos aos poucos e muito directamente.

O escândalo Volkswagen revelou tantos podres que ameaçou, por momentos, pôr em risco a própria sobrevivência da empresa; também questionou a racionalidade de aplicar tecnologia tão poluente em pequenos carros de passageiros. Mas os interesses em jogo são de tal ordem, a quantidade de dinheiro que poderia deixar de fluir é de tal forma infinita, que, tal como no melhor filme da saga operática-espacial, também aqui O Império Contra-Ataca. Terminou o período (de meses) em que a reacção da Volkswagen, apanhada em flagrante, foi impreparada, tonta e cómica, cheia de contradições, mentiras e desculpas balbuciadas. Na última semana, o grupo alemão explicou-se numa mega-conferência de imprensa onde a ideia-chave foi minimizar sistematicamente os problemas, atirando-os ao mesmo tempo para as costas de “alguns indivíduos e unidades isoladas dentro da empresa”. Em seguida vieram as tentativas insistentes de virar as nossas cabeças (e pulmões) de consumidores do presente, apontando-os para um futuro mirífico. Um futuro em que os motores diesel começam a ser reparados na Europa (mas não nos Estados Unidos, cujos padrões ambientais mais exigentes são difíceis de atingir sem batota). Um futuro em que a cultura da empresa vai supostamente melhorar, tolerando o erro, gastando menos tempo em viagens e reuniões e mais em efectivamente projectar e construir melhores carros.

Essas são as palavras musicais proferidas para o público. Em privado, dois dias depois, o império automóvel alemão contratou um aliado poderoso: Kenneth Feinberg, um super-advogado que se especializou em processos envolvendo compensações em massa. Foi Feinberg que lidou com os milhares de processos por compensações devidas depois dos atentados de 11 de Setembro, do derrame da plataforma BP no Golfo do México, e da ignição de carros General Motors cujo funcionamento defeituoso acaba de custar 550 milhões de euros à empresa - mas não sem antes provocar 124 mortos e 275 feridos em acidentes arrepiantes. O facto de a Volkswagen, para se tentar proteger, ter de recorrer ao homem com experiência em gerir ataques terroristas e desastres ambientais diz bem sobre a dimensão da catástrofe.

O escândalo é de tal magnitude que até os amordaçados poderes políticos europeus sentiram a necessidade de investigar. O Parlamento Europeu acaba de constituir (mesmo com os votos contra de toda a direita, sempre encarniçada na sua defesa das grandes multinacionais quando estas se opõem aos cidadãos) uma comissão de inquérito sobre o “dieselgate” - durante um ano, os eurodeputados vão ter poderes alargados para descobrir quem enganou os cidadãos, até que ponto, e com que cúmplices governamentais. O relatório final pode vir a ter consequências explosivas - e 2015 pode ficar na História como o ano em que o diesel começou a desaparecer. Esperemos que sim, até porque as máscaras de Darth Vader são caras.

De vitória em vitória até à derrota final


Paris. Vértice da civilização ocidental, construção real como imaginária de diferentes vontades, sonhos e realizações. E como cidade global, Paris apresentou-se como anfitriã da “cimeira da última oportunidade”: ou os líderes mundiais chegavam a um acordo para limitar as emissões de gases e salvar a Terra do futuro, ou seria demasiado tarde.

A dramatização ajudou a negociação, claro. Sem esse sentimento de ter os olhos ansiosos e reprovadores da população postos sobre si, os líderes políticos estariam muito menos preocupados em conseguir algum tipo de acordo. Mas essa mesma dramatização ajudou à criação de uma narrativa política autocongratulatória, onde o problema é vendido como titânico e as possibilidades de conseguir algo de positivo consideradas como muito baixas, para que no final qualquer acordo seja apresentado como um enorme alívio e uma retumbante vitória – e os seus obreiros políticos, claro, vistos como autênticos heróis.

O guião foi seguido à risca, os líderes mundiais foram pressurosos a anunciar uma “vitória histórica” logo no sábado à noite, e a imprensa mundial alinhada serviu-lhes mais uma vez de caixa de ressonância com títulos feitos a metro. “Acordo ambicioso”, “186 países signatários”, “Aumento da temperatura contido a +1,5 ºC”. Foi um fim de semana recompensador em termos de notícias mundiais, se também contarmos as eleições na Arábia Saudita (onde mulheres puderam ser eleitas pela primeira vez) e as regionais em França (onde uma mulher, líder da Frente Nacional, ficou de mãos vazias).

Pouco a pouco, no entanto, a realidade teimou em vir à tona. Uma pouco noticiada mas enorme manifestação de 15000 desfilou em Paris para protestar contra o acordo, o que não faria sentido se este fosse a panaceia anunciada. E o cientista James Hansen, uma voz respeitadíssima que é amiúde considerado o “pai” das ciências climáticas após ter divulgado o efeito de estufa provocado por alguns gases ainda em 1988, não teve meias palavras ao classificar o que se passou em Paris como uma “fraude” e uma “falsidade”.

Apontar para um objectivo de “apenas” 1,5 ºC graus de aumento de temperatura global é uma espécie de resolução de Ano Novo: uma intenção louvável que não passará disso se a determinação falhar e os meios não existirem. Hansen avisa que isto não passa de uma promessa vazia, “só palavras, nada de acção”. Os combustíveis fósseis podem ter visto em Paris o início do seu declínio, mas continuarão a ser os mais baratos, pois continuam livres de taxação ecológica – uma conquista das petrolíferas em Paris. E as emissões provindas de transportes, a indústria mais poluente do planeta, nem sequer são consideradas no acordo – mais uma conquista de lobbyistas poderosos em relação ao texto final. Texto esse que não inclui na sua parte obrigatória as contribuições de cada país – ou seja, a parte das medidas concretas cabe às melhores decisões de cada um, e isso é uma história que raramente tem um final feliz. Actualmente, as propostas actuais de cada país já significam um aumento a longo prazo de de 3,7 ºC.

A diferença parece subtil mas na realidade é catastrófica. A esse nível, metade das ilhas do Pacífico desaparecem, e metrópoles costeiras como Barcelona, Nova York ou Shanghai ficam ameaçadas devido à subida do nível dos oceanos. Além disso a água potável do mundo reduz-se em um terço, e as colheitas em 25%, tornando a vida no planeta insustentável para grande parte da Humanidade. Paris, “uma grande vitória”, como outros acordos antes assim foram anunciados. E assim vamos de vitória em vitória, até à grande derrota final.

Acabem com a Segunda Emenda


Mais uma semana, mais um ataque selvagem. Uma festa entre colegas de trabalho na Califórnia é devastada por um casal de cobardes de forma particularmente atroz. O homem, que todos os dias trabalhava com aqueles que assassinou, ouve um comentário trocista sobre a sua barba e sai furioso em direcção a casa; passados não mais de 20 minutos volta, vestido com roupas militares de fancaria e acompanhado da sua esposa, e vinga a sua “humilhação” disparando 90 balas que matam 14 pessoas (ironicamente 6 delas eram homens com barba) e deixam 21 em estado grave.

É tristemente óbvio que a matança não foi originada por algum tipo de ofensa pessoal. O casal tinha alugado um jipe há quatro dias e alimentava um verdadeiro arsenal pronto a utilizar; a esposa, que já tinha sido uma “mulher moderna” quando vivia no Paquistão, frequentava agora nos Estados Unidos uma seita que levava mulheres a “descobrir o islão”, mas na realidade levando-as aos limites do radicalismo. O marido, reservado, taciturno, era um muçulmano devoto que demonstrava uma predilecção obsessiva por armas de fogo. Mas mais uma vez os comportamentos suspeitos passaram despercebidos a todos os sofisticados esquemas de vigilância que nos vigiam a todos, cidadãos comuns de democracias supostamente livres.



O problema é que nos Estados Unidos, matar pessoas com uma arma semi-automática já quase nem é notícia, antes um dano colateral de uma sociedade que fez escolhas ideológicas igualmente extremistas. O rescaldo deste último massacre trouxe-nos um dado absolutamente estarrecedor: nos últimos 1066 dias, aconteceram nos EUA 1052 tiroteios em massa.

Tirando os feriados, dá uma média superior a um atentado por dia.

Um tiroteio em massa é definido por um incidente em que pelo menos quatro pessoas, entre mortos e feridos, são atingidas por balas. E nos últimos três anos aconteceu um… por dia. Em um país apenas. Com um total macabro de 1347 mortos e 3817 feridos (graves, necessariamente, que apanhar com uma bala não deve ser agradável). A isto há que somar as outras vítimas em incidentes mais isolados – as armas de fogo matam ali 13000 pessoas por ano, 300 vezes mais do que em Portugal ou em França, por exemplo.

Isto acontece, claro, porque a cultura estado-unidense glorifica a violência. Desde tenra idade, uma criança é ali exposta a milhões de assassínios televisivos antes de atingir a idade adulta; uma percentagem enorme da população pratica o tiro por desporto; há 270 milhões de armas a circular pelo país – uma média de quase uma por habitante… E claro, existe a Segunda Emenda, um aditamento à Constituição que garante a cada americano o direito a possuir armas, escrito há mais de dois séculos para permitir aos colonos defenderem-se do exército britânico numa altura em que a ex-colónia americana não tinha exército e as espingardas disparavam uma bala a cada 20 segundos. Há dias, o casal de terroristas tinha consigo 1400 balas prontas a disparar em pouco mais do que esses 20 segundos.

Por tudo isto o venerável New York Times escreveu, pela primeira vez em um século, um editorial de primeira página: “Acabem com a epidemia de armas na América”. Nele verbera, finalmente, os que votam em líderes políticos que demonstram publicamente muito pesar e encomendam orações fervorosas, mas que em seguida protegem, contra a segurança dos seus concidadãos, os privilégios e os lucros da indústria de armamento – lucros de que, obviamente, os mesmos políticos também partilham. Nada vai melhorar por ali.