terça-feira, 8 de março de 2016

Good COP/bad COP


Qualquer pessoa que veja filmes americanos o sabe: a estratégia para fazer falar um suspeito é metê-lo numa sala com dois polícias, o mau e o bom (“good cop/bad cop”); o mau ameaça o bandido com décadas de cadeia, o bom tenta ganhar a confiança do meliante, diz que está ali para o ajudar se ele colaborar, acalma o parceiro… no caso seguinte, os polícias trocam de papel.

Esta é um pouco a metáfora da Conferência sobre o Clima que começou esta semana em Paris – a COP (Conferência das Partes). O mundo político reúne-se em mais uma tentativa para limitar as alterações climáticas. E os líderes dos maiores países, os que contribuem de forma mais significativa para aumentar as emissões de gases poluentes, expressam-se em coro alinhado. “Sim, as alterações climáticas são um grande desafio que se nos coloca. Sim, apenas uma acção decisiva e concertada de todo o planeta será capaz de responder adequadamente. De Paris terá de sair um acordo firme e ambicioso que consiga controlar as emissões globais. E sim, claro, o país que eu lidero está na linha da frente, a fazer um enorme esforço!”

Mas as belas palavras são contrabalançadas por um discurso mais assustador – e mais inconvenientemente realista. Os presidentes do Quiribati e das Maldivas, por exemplo, apelaram a que se faça algum combate de concreto, mas sublinharam que para eles já é tarde: as suas populações já fizeram as malas e estão preparadas para abandonar as ilhas, em breve submersas. E os países em desenvolvimento, hoje em dia já responsáveis por 65% das emissões globais, continuam a insistir que as “responsabilidades históricas” dos países mais ricos devem fazer cair o grosso dos esforços de redução para o nosso lado, enquanto a China e a Índia abrem a cada ano dezenas de centrais de queima de carvão – essa divisão entre países mais ricos e aqueles em vias de o ser foi afinal o que provocou o falhanço de todas as outras cimeiras até agora, desde a do Rio de Janeiro em 1992 até Lima em 2014. As probabilidades de novo estrondoso fracasso em Paris são enormes.

É irónico. O que está em cima da mesa é simplesmente a manutenção do planeta Terra de forma a que a espécie humana nele possa sobreviver – dir-se-ia que o tema merece alguma da nossa atenção. Alguns factos que resumem a dimensão do problema: 13 dos 14 anos mais quentes de sempre aconteceram neste século, e 2015 será o mais quente de toda a História; isto acontece porque a concentração de CO2 na atmosfera é a maior dos últimos 800 000 anos, e está sempre a aumentar. Além da subida da temperatura, há mais fenómenos climáticos extremos e uma subida rápida do nível dos oceanos devido ao derretimento dos gelos polares – nos últimos 35 anos perdemos ali o equivalente à área de toda a Europa Ocidental. O custo da inacção passada é tremendo, já só podemos limitar os danos. Mesmo adoptando todas as medidas propostas em Paris, no ano 2100 a temperatura do planeta será ainda assim de +2,7 ºC em relação aos níveis pré-industriais; o custo de não fazer nada será, por outro lado, um aumento de 4,5 ºC que tornará a vida neste planeta inviável para a maior parte dos seres vivos, privados de água e comida.

As perspectivas de longo prazo não são nada boas. E foi o líder das Nações Unidas, Ban Ki-moon, a colocar a cereja no topo do bolo lembrando que as alterações climáticas também alimentam as ameaças de curto prazo: foram as secas extremas de 2006 na Síria a impelir vagas enormes de refugiados climáticos para as grandes cidades, cidades onde não encontraram empregos, perspectivas nem paz – facilitando assim o trabalho dos cantos de sereia do Daesh para o recrutamento de fanáticos capazes de levar a cabo atentados na mesma Paris onde, por dez dias, o mundo se encontra em busca de alguma redenção. É o fechar do macabro círculo.

Burros de Tróia


E ao terceiro dia, a polícia francesa viu o cérebro do ataque, Abdelhamid Abaaoud, a dar entrada num prédio do subúrbio parisiense de Saint-Denis. Abaaoud estava acompanhado por uma suposta prima, Hasta Boulahcen – uma eterna adolescente cujas ocupações eram vender droga e glorificar o Daesh nas redes sociais; dentro do apartamento já se encontravam outros cúmplices.

Às 4:20 da madrugada seguinte, ou seja há exactamente uma semana, a polícia atacou. Seguiram-se seis horas de cerco implacável, em que os terroristas usaram mais uma vez uma brutalidade desumana apoiada em munições pesadas, granadas e explosivos. Saldo final, quatro mortos – incluindo os personagens já referidos e o cão-polícia Diesel –, mais cinco detidos.

O momento de tragicomédia já tinha acontecido na fase inicial do cerco, ainda estava escuro: as câmaras de televisão entrevistam um jovem árabe que se identifica como o proprietário do apartamento onde se refugiam os terroristas. Com a melhor cara de inocente que conseguiu mostrar, Jawad B. encolhe os ombros: “ah, eu não sabia quem eram, pediram-me para alojar duas pessoas por três dias e eu claro, prestei o serviço. Não sei de onde vêm, quem são… não sei nada. Se soubesse acha que os teria alojado?”

A falsa ingenuidade de Jawad não enganou ninguém, e no dia seguinte a web já estava repleta de piadas com a sua foto e legendas imaginárias (exemplo: “eles perguntaram-me se sabia fazer cocktails molotov, eu respondi que não percebia nada disso, não sou barman”). Em seguida, descobrimos que não somente Jawad já foi condenado a 8 anos de prisão pelo assassínio do seu melhor amigo após uma discussão sobre um telemóvel, como também ele não é o proprietário legal do destruído apartamento. E percebemos então que estamos a assistir à ponta do iceberg de mais um monumental embuste.

De facto, todo o caso exemplifica bem a magnitude do adversário que as democracias ocidentais, as sociedades mais avançadas do planeta, têm pela frente. Não se trata só de nos defendermos de um bando de bárbaros fanáticos com armas automáticas. Esses fanáticos têm  a) bolsos fundos, dado que são financiados por amigos poderosos em outros Estados árabes (com dinheiro que por sua vez provém dos nossos gastos em petróleo, e possivelmente de negócios estranhos entre capitais qataris e empresas luxemburguesas, por exemplo…); e, o que é talvez ainda mais importante,  b) uma extensa e generalizada rede de silêncios, conivências e ajudas por toda a Europa, sobretudo em zonas de alta concentração de comunidades muçulmanas. É por isso que o agora infame bairro de Molenbeek, em Bruxelas, onde não há qualquer multiculturalismo (ou cultura) e a agressão e intolerância são comuns, é considerado “o esconderijo ideal”; é por isso que “alguém” (quem?) pede a Jawal que aloje duas pessoas por três dias e este “faz o serviço” sem fazer mais perguntas; é por isso que criminosos nunca são apanhados, e atentados são planeados durante meses – por vezes em plena mesquita – sem que apareça um único informador, sem que ninguém se insurja. Cúmplices, por colaboracionismo.

E depois do mal feito, vêm as lágrimas. Mas há muitas que soam a falso. Já ouvimos o costumeiro “ai mas ele era tão bonzinho, nunca pensei!”. Já ouvimos o irmão de um terrorista que continua a monte a pedir-lhe que se entregue à polícia “pela honra da nossa família” – ou seja não pelo sangue derramado, não pelas vidas promissoras cortadas a meio, mas por si próprios; já ouvimos muitos queixando-se que o Daesh está a “destruir a reputação dos muçulmanos” – mas são muito poucos os que condenam sem reservas a destruição de famílias, ou o ataque a esta nossa louca ideia de sociedade liberal e aberta. Na guerra que estamos, desgraçada e involuntariamente, a travar, aqueles são os nossos cavalos de Tróia. Ou talvez sejam só burros.

Sangue, suor e lágrimas


George W. Bush tinha razão. Dick Cheney, o sinistro líder na sombra, também tinha razão. Os neocons americanos tinham razão. Uma semana após o 11 de Setembro de 2001, o então presidente americano proferiu perante o Congresso o "seu" (escrito por Michael Gerson) mais memorável discurso de sempre. Foi a primeira vez que o mundo em geral ouviu falar na Al-Qaeda, nele se utilizou pela primeira vez a frase "war on terror", e o texto incluiu passagens quase proféticas:

"Esta guerra não será como as anteriores. A nossa resposta será muito mais do que retaliação instantânea e ataques isolados. Não deveremos esperar uma batalha, mas sim uma longa campanha, diferente de tudo o que vimos até agora, baseada sobretudo em operações secretas até mesmo depois de concluídas." E Bush poderia ter acrescentado (mas seria demasiada sinceridade num discurso que almejava ser épico): e vamos sofrer derrotas amargas, tal como agora em Paris, e tal como no início da II Guerra as democracias sofreram tantas derrotas amargas contra o nazismo (por exemplo quando Hitler conquistou Paris…).

Essa equiparação do nazismo ao islamismo radical já era feita no mesmo discurso de 2001. "Sacrificando a vida humana ao serviço das suas visões radicais, abandonando todo o qualquer valor para além da sede de poder, os terroristas seguem o caminho do fascismo, do nazismo e do totalitarianismo. E seguirão esse caminho até ao fim, onde ele acaba, na vala comum da História reservada aos embustes desmascarados." De facto há imensos paralelismos entre os tempos que vivemos e os anos 1930; o nazismo germinou por entre o fanatismo de uma população humilhada, pobre e que acreditava estar a ser injustiçada. O ovo pôde dar origem à serpente por Hitler não ter sido levado suficientemente a sério, primeiro, e por uma absolutamente errada estratégia de apaziguamento, depois, que assumia que era possível negociar com a loucura e a barbárie. Nunca é.

“A História repete-se sempre, primeiro como tragédia” – a frase até é de Marx, mas grande parte da esquerda recusa-se a admitir que a civilização tem no islamofascismo outro inimigo do mesmo calibre. “Pode ser que não estejas interessado na guerra, mas a guerra está interessada em ti” – a frase até é atribuída (erradamente) a Trotsky, mas também não ajuda alguma esquerda a compreender o que é agora dolorosamente evidente: a guerra já nos escolheu a nós. E estamos a perdê-la. Também por isso é particularmente gravoso ouvir, vindo dos quadrantes do costume, e ao abrigo de uma liberdade de expressão e de crítica que a nossa foi a única civilização de sempre a conceder, as velhas cassettes gastas e ligeiramente lunáticas: “foram os EUA que criaram o ISIS, foi a França que lhes vendeu as armas, fomos nós os ocidentais os autores morais do crime, só ligamos aos parisienses e não aos outros mortos, tudo não passa de uma grande conspiração dos donos do mundo para nos manterem assustados e com uma mão firme no poder, eles até são capazes de mandar matar os próprios cidadãos para isso… e já agora, aqueles tipos do Charlie Hebdo estavam a pedi-las”.

Basta. Respeito pelas vítimas e pela nossa inteligência. Há momentos decisivos em que até as mentes confusas, repletas de dogmas, se devem definir. Entre a Liberdade e a escravidão, escolher a primeira. Entre a Igualdade e o sectarismo, escolher a primeira. Entre a Fraternidade e o ódio, escolher a primeira. Entre a França e o IS, escolher a primeira. Entre o humanismo e a bestialidade, escolher o primeiro. Entre a civilização ocidental e a barbárie medieval, escolher a primeira. Por vezes o mundo é a preto e branco. É muito confortável lançar um “o que todos querem é uma guerra e não lhes vamos dar esse gostinho”, mas isso não passa de uma variação da atitude da avestruz: quer queiramos quer não, HÁ uma guerra em curso que representa o desafio de toda uma geração – da forma mais inteligente possível, é certo, mas temos mesmo de a travar. Ou o futuro apenas nos reservará mais sangue, suor e lágrimas.

Porto inseguro

“Muito simplesmente, podemos infringir as leis europeias de protecção de dados. Nunca vai acontecer nada”. Um jovem de 24 anos ouviu esta frase durante o semestre em que resolveu continuar os seus estudos na Califórnia. A arrogância do professor norte-americano despertou-o; a evidente impunidade irritou-o. A frase funcionou para o austríaco Max Schrems como uma gota de água, a gota que o fez iniciar uma luta particular pela recuperação da sua privacidade e pela aplicação da lei – a Europa tem leis, mas só as aplica contra os fracos. “Uma grande companhia multinacional vive no Velho Oeste, onde funciona a lei do mais forte, e pode fazer o que lhe apetece”, afirmou Schrems ao explicar as suas motivações.

Ao regressar nesse ano de 2011 à Europa, Max Schrems pediu ao Facebook que lhe entregasse toda a informação que a empresa detinha sobre si próprio. No Portugal de 1974, ou na Alemanha de Leste de 1989, muitos se surpreenderam com o tamanho da sua ficha individual de informações detida respectivamente pela PIDE e pela Stasi, mas nenhuma delas chegava perto da extensão do ficheiro que Schrems recebeu do Facebook: 1222 páginas com absolutamente todos os cliques, fotos, gostos, mensagens, comentários que o austríaco tinha feito ao longo de anos – incluindo muitos que ele tinha apagado. “Quando pensas que apagas algo do Facebook, na verdade apenas estás a escondê-lo de ti próprio”, avisa.

Schrems, um europeu, sabia que os seus dados não estavam a ser protegidos. Mais do que isso, sabia – como todos temos a obrigação de saber depois das revelações de Edward Snowden sobre a espionagem em larga escala de tudo, de todos, em toda a parte – que os seus dados pessoais eram transmitidos à NSA, a PIDE americana, através do programa secreto PRISM. E por isso fez uma queixa às autoridades irlandesas (a sede europeia do Facebook é na Irlanda, onde a companhia quase não paga impostos), que prontamente a rejeitaram. Schrems persistiu: apresentou 22 queixas, todas rejeitadas na base do papel de conveniência que a Europa produziu há 15 anos chamado “Safe Harbour” (Porto Seguro) e que permite às empresas europeias entregarem tudo e mais alguma coisa às suas congéneres americanas desde que elas se certifiquem como “garantindo aos europeus um nível adequado e equivalente de protecção dos seus dados” – seja lá o que isso queira dizer. Quem certifica essa protecção como adequada? As próprias empresas.

O caso subiu até ao Tribunal de Justiça, no Luxemburgo. E aí, em Outubro, o pequeno David austríaco derrotou vários Golias: o Facebook, o esquema Safe Harbour de transferência de dados (utilizado por mais de 4000 grandes companhias), e a Comissão Europeia que o engendrou e logo se desinteressou da defesa de um direito fundamental dos cidadãos europeus – a privacidade. Um estudante de doutoramento venceu o caso e estilhaçou o Porto (In)seguro. Desde o seu exílio, esse outro D. Quixote moderno, Snowden, congratulou-o: “Parabéns, Max Schrems. Mudaste o mundo para melhor”.

Mudou mesmo? Depende do desfecho das próximas batalhas. A decisão do Tribunal de Justiça encoraja e até obriga as autoridades europeias de protecção de dados a fazer o seu trabalho – mas é preciso que isso aconteça. Está iminente uma outra decisão importante, caso Microsoft vs Governo dos EUA, em que aquela se recusa a entregar a este os emails guardados em servidores europeus. E há apenas dois dias a Bélgica proibiu o Facebook de espiar o comportamento na rede de quem não tem uma conta e se limitou a seguir um link na rede social (os que têm conta podem continuar a ser espiados, mas ainda assim já é um princípio).

Pode ser que Max Schrems seja um ponto de viragem. Talvez, apenas talvez, as arrepiantes palavras de Mark Zuckerberg proferidas em 2010, “a era da privacidade acabou”, se venham a revelar prematuras ou até… erradas.

Querida, eu derrubei o muro de Berlim


Novembro de 1989. No regime comunista da Alemanha de Leste, nem tudo se passa como antes: o velho ditador Erich Honecker sai finalmente de cena – poucos meses antes tinha afirmado “o Muro estará de pé daqui a 50 ou mesmo 100 anos” – e é substituído pelo mais moderado Egon Krenz. Pressionado pela recente abertura das fronteiras na Hungria, no que tinha sido a primeira brecha na Cortina de Ferro (numa amarga ironia histórica, a Hungria dos nossos dias foi o primeiro país a erguer um muro para bloquear os refugiados de 2015), afundados pela depauperada situação económica da RDA, os novos dirigentes encontram uma única forma de fazer dinheiro rapidamente: rentabilizar a liberdade de circulação dos seus cidadãos. À capitalista Alemanha Ocidental chega então uma proposta milionária, o relaxamento dos controlos de fronteira entre Leste e Oeste, em troca de 5 mil milhões de euros à cabeça mais 2 mil milhões anuais. Mas em Bona, Helmut Kohl recusa a chantagem.

O regime leste-alemão tentou então ganhar tempo para sobreviver, introduzindo algumas reformas. Um dos membros do partido, o ex-jornalista Günter Schabowski, ia surgindo como porta-voz oficioso para, em monótonas conferências de imprensa, dar a impressão que algo ia mudando para que tudo pudesse continuar na mesma em Berlin-Leste, na Cidade de Karl Marx e na restante RDA. Era esse o caso, mais uma vez, naquele fim de tarde no dia 9; após uma hora, a conferência estava prestes a terminar. Até que…

Alguém traz uns papéis com uma decisão fresca dos órgãos do Comité Central do partido que Schabowski, após uma hora de cinzento discurso, passa a ler: em resposta à contestação nas ruas, qualquer pessoa passará a poder pedir um visto para uma visita ao estrangeiro sem ter de alegar razões especiais. “Quando é que essa medida entra em vigor?” pergunta um repórter. Schabowski não sabe a resposta. Procura por uma data nos papéis que recebeu, não a encontra, e – num momento de loucura genial – decide, talvez lembrando-se da regra nas provas orais em que uma resposta errada mas convicta é melhor que nenhuma, improvisar: “tanto quanto sei… imediatamente. Sem demora!”

Depois do burburinho na sala, a notícia espalhou-se como fogo numa floresta de eucaliptos durante o verão. Pouco depois das sete da tarde, a televisão pública ocidental já avançava a notícia. Os alemães de leste começaram a dirigir-se em massa para o Muro, arriscando-se a levar um tiro como tantos outros antes deles. Os guardas não faziam ideia como reagir, nada daquilo estava previsto, tinha surgido de um lapso de um burocrata do aparelho. Finalmente, às 23:30, os portões do Muro foram abertos – o momento metafórico em que o Muro caiu. Os habitantes de Berlim-Leste irromperam pelo Oeste, em lágrimas, a divisão comunismo vs capitalismo dissolveu-se aí, os regimes totalitários na Europa caíram como dominós.

Günter Schabowski apagou-se este domingo, aos 86 anos. Vivia na parte Oeste de Berlim, e depois do desaparecimento da RDA ainda escreveu mais alguns capítulos da sua história pessoal: voltou ao jornalismo, foi condenado a 3 anos de prisão por “autoria moral” dos disparos dos guardas de fronteira (cumpriu um) e fez assessoria de candidatos políticos da CDU alemã (o partido de Merkel, de centro-direita). Também deu origem a uma expressão em alemão – um “momento Schabowski” é aquele em que dizemos algo sem prever as consequências. Mas acima de tudo, com uma frase atabalhoada, este homem derrubou o Muro de Berlim naquela noite.

30 milhões de euros? Não, obrigado


"Margrethe Vestager é a minha nova heroína", leu-se no Twitter na semana passada. O sentimento de admiração é perfeitamente justificado: em apenas um ano, a determinada comissária fez muito pela causa da reforma económica europeia. A dinamarquesa foi proposta pelo seu país para a Comissão Europeia e Juncker deu-lhe a pasta da Concorrência - talvez a mais poderosa do executivo comunitário.

Pela voz de Vestager, a Comissão acaba de anunciar que os acordos fiscais que o Luxemburgo e os Países Baixos ofereceram à Fiat e à Starbucks constituem na verdade auxílios estatais que distorcem a concorrência - uma forma enviesada de os classificar como aquilo que eles na realidade são, formas institucionalizadas de evasão aos impostos. E agora uma pausa para respirar, porque este é um momento histórico.

A decisão da equipa de Vestager representa um precedente que pode vir a mudar as regras do jogo. Os governos perceberam finalmente que fazer dumping fiscal contra o vizinho significa, a médio prazo, uma corrida para o fundo onde todos tentam ser aqueles que mais miminhos distribuem pelas multinacionais – e são estas as únicas que ficam a ganhar, enquanto os Estados definham nas suas contas, privados das legítimas fontes de receita, e nas suas funções, o que inevitavelmente penaliza todos os cidadãos com destaque para os mais vulneráveis. Entretanto, também as pequenas e médias empresas não conseguem sobreviver, asfixiadas pela concorrência desleal de quem já é enorme e ainda por cima não tem de se preocupar com pormenores como esse de pagar impostos.

Os truques usados pelas multinacionais são tão… indignos, que se torna evidente que só podem durar anos, como duram, com a colaboração tácita do poder político. O caso da Starbucks é exemplar. A multinacional de café tinha a sua sede europeia em Amesterdão e em 2008 criou uma série de subsidiárias, como a Emerald City, que por sua vez detinham novas subsidiárias, como a Alki LP. Esta última era uma empresa baseada em Londres que não pagava impostos nem no Reino Unido nem nos Países Baixos, e que “geria a propriedade intelectual do grupo”; como tal, a sede em Amesterdão pagava regularmente a esta empresa fantasma royalties exageradíssimas por uma “receita de café” que não era mais do que a temperatura a que os grãos devem ser torrados (e pela qual mais nenhuma empresa Starbucks no mundo tinha de pagar). Por outro lado, a sede em Amesterdão também “comprava” a preços exorbitantes grãos de café verdes a uma outra subsidiária sua na Suíça (como seria talvez de prever a este ponto, os grãos de café nunca passavam sequer perto dos Alpes).

Os dois estratagemas retiravam dos Países Baixos quase toda a base de imposição dos lucros. No ano passado, a Starbucks pagou 2,6 milhões em impostos, depois de ter obtido lucros de 407 milhões – uma taxa efectiva de imposto de 0,63% que faz rir (ou chorar). Um processo semelhante acontece há anos no Luxemburgo com a Fiat Chrysler. Agora a Comissão Europeia instruiu os dois países a recuperarem cada um até 30 milhões de euros em impostos atrasados – dinheiro que supostamente seria bem-vindo na conta do Estado, por exemplo para auxiliar refugiados para os quais, avisam os governos, “não há folga orçamental”. Mas tanto os Países Baixos como o Luxemburgo não estão de acordo e vão recorrer da decisão europeia para não terem de cobrar esse dinheiro…


Pouco importa. Seja como for, uma multa de 30 milhões significa pouco mais que amendoins para a Starbucks. Mas o precedente está criado – e as próximas decisões serão sobre a Apple na Irlanda e a Amazon no Luxemburgo, onde as somas em questão serão muito maiores. Se Vestager contribuir para criar um sistema justo onde as grandes empresas contribuem realmente para as comunidades em que se integram e de que se aproveitam para enriquecer, passa a ser também a minha heroína.

O Canadá vai salvar o planeta


“Culpem o Canadá!”, cantavam as subversivas personagens de South Park. A canção tornou-se notória não apenas pelo seu humor para lá dos limites (chega a chamar “bitch” a uma conhecida cantora canadiana) mas também pela sátira a quem nunca enfrenta as responsabilidades – quem a canta é um casal com filhos mal-educados que prefere culpar um filme canadiano, e por inerência todo o país, a admitir que eles próprios possam ter criado uns monstrinhos.

Culpar o Canadá tem sido um desporto favorito entre quem está preocupado com as alterações climáticas no nosso planeta. E por boas razões: apoiado nas suas enormes reservas de carvão e areias betuminosas, liderado por um primeiro-ministro que não acredita que a acção humana esteja a aumentar a temperatura da Terra e se ri das energias renováveis, o Canadá – juntamente com a Austrália, cujo chefe de Governo uma vez definiu toda a ciência climática como “uma grande treta” – tem persistentemente minado as diferentes tentativas globais para reduzir as emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. A sabotagem é extremamente eficaz porque o argumento dos países emergentes é imediatamente validado – se países ricos como o Canadá e a Austrália se recusam a reduzir o seu consumo de energias fósseis por medo de afectar a sua economia, é fácil à China ou à Índia alegar que não há outra forma de atingir o mesmo desenvolvimento que a de utilizar as mesmas energias. E de facto, a Índia aumenta o seu consumo de carvão a um ritmo de quase 10% ao ano, enquanto a China utiliza mais desta energia suja que todo o resto do mundo em conjunto.

Estamos na contagem decrescente para a grande cimeira sobre o clima que decorrerá em Dezembro em Paris – a COP21. A situação actual, medindo cuidadosamente as palavras, é dramática: a mão destruidora humana – está provado para além de qualquer dúvida razoável – é já responsável pelo aumento de 0,8 ºC na temperatura global da Terra; mesmo que por magia parássemos hoje de emitir CO2 para a atmosfera, o acumulado iria a médio prazo continuar a aquecer o planeta até 2 ºC adicionais – o “ponto de viragem” a partir do qual a sustentabilidade da nossa espécie começa a entrar em dúvida. Baseando-se nos apelos científicos cada vez mais estridentes, vários líderes estão a pôr pressão sobre as discussões que vão ocorrer em Paris, insistindo em que precisamos mesmo de chegar, pela primeira vez na História, a um acordo global e vinculativo sobre o clima da Terra, com reduções de emissões a partir do ano 2020 (quando termina o protocolo de Quioto).

As boas notícias? Esse acordo acaba de ficar mais próximo. Na boa tradição de intriga palaciana da política da Austrália, este país acaba de substituir o seu primeiro-ministro “negacionista do clima” por outro, Turnbull, que já considera que “as consequências de alterações climáticas sem controlo serão catastróficas”. E o Canadá foi a eleições há dois dias, nas quais os eleitores finalmente retiraram a maioria aos conservadores de Stephen Harper, viciados em petróleo e carvão, entregando-a aos liberais – um partido de centro-esquerda que se vai estrear na cena internacional em Paris jogando um papel construtivo, incentivando a transição das energias fósseis para as renováveis, e desbloqueando a permanente oposição entre os que procuram um acordo de redução ambicioso e os que arrastam os pés. Chega de culpar o Canadá – os canadianos não votaram apenas para eleger um governo, votaram também para salvar o planeta.